Um projeto que tramita sem alarde no Senado Federal cria um novo marco regulatório para punir os devedores contumazes. De autoria do senador governista Jean-Paul Prates (PT-RN), a proposta visa enquadrar empresas devedoras que usam a inadimplência para obter vantagens competitivas de mercado.
O projeto já foi relatado pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), que consolidou o texto original do PLP 164/2022 com o do PLS 284/2017, de autoria da senadora Ana Amélia. O novo substitutivo define critérios para diferenciar o devedor contumaz do devedor eventual com o intuito de punir apenas aqueles que reiteradamente deixam de pagar tributos com o objetivo de obter vantagem competitiva.
A medida é comemorada entre especialistas como um novo marco em favor da livre concorrência. É o que dizem, por exemplo, os advogados das áreas de Direito Concorrencial Nathalie Frias, Pedro Lacerda, Bernardo Quezado, Lorena Dacier, e o tributarista Carlos Gouveia, do escritório Almeida Prado e Hoffmann Advogados. Ao analisar o texto do PL sob as perspectivas jurídica, econômica e institucional, chegaram a conclusão de que a matéria cumpre a função de regulamentar o que está previsto na Constituição.
Para Carlos Gouveia, sócio da área Tributária, o projeto representa um avanço ao corrigir distorções históricas no sistema. “A sonegação fiscal no Brasil prejudica não só a arrecadação, mas também o equilíbrio concorrencial. Empresas que pagam seus tributos são penalizadas frente àquelas que adotam práticas sistemáticas de inadimplência. O PLP 164/2022 traz mecanismos importantes para resguardar os interesses do Fisco e da livre concorrência”, avalia.
Ele lembra que, no Brasil, a sonegação impacta diretamente o mercado. “Isso prejudica não apenas a arrecadação, mas também a própria atividade empresarial, gerando concorrência desleal. O contribuinte que paga seus impostos em dia acaba sendo penalizado em comparação ao contribuinte que está inadimplente perante o fisco e, portanto, acaba conseguindo praticar uma atividade empresarial de forma menos onerosa ou com mais lucro”.
Ele ressalva que não está falando do contribuinte que momentaneamente não paga seus tributos, situação que, na opinião dele, decorre da junção de diversos fatores, tais como situação econômica delicada e alta carga tributária. “Esse cenário, por certo, não afeta a livre concorrência. O problema são os contribuintes que mantêm uma conduta de não pagamento dos seus tributos, utilizando de estratagemas indevidas e fora da legalidade. Sob esse aspecto, o PLP 164/2022 corrigirá a distorção ocasionada, resguardando tanto os interesses fazendários como a livre concorrência.”
Nathalie Frias complementa que, ao estabelecer parâmetros objetivos para caracterização do devedor contumaz, o projeto cumpre adequadamente a função prevista no art. 146-A da Constituição. “A distinção entre inadimplente eventual e contumaz é essencial para evitar abusos e arbitrariedades. O texto oferece segurança jurídica ao impedir que sanções sejam aplicadas indistintamente”, explica.
Apesar dos avanços, os especialistas alertam para os riscos na aplicação prática. Segundo Carlos Gouveia, as medidas previstas, como suspensão de benefícios fiscais e impedimento de firmar convênios, devem ser aplicadas com cautela. “Ainda que constitucionalmente válidas, essas sanções podem inviabilizar a atividade empresarial, caso não observem rigorosamente o devido processo legal”, afirma.
Pedro Lacerda aponta também que a adoção imediata de sanções antes da conclusão do processo administrativo pode causar danos irreparáveis às empresas. “É fundamental que qualquer medida seja precedida de contraditório e ampla defesa. O projeto prevê esses direitos, mas é necessário assegurar que o Fisco os respeite plenamente na prática”, ressalta.
Impactos concorrenciais
O texto em análise na CCJ reconhece que os setores de cigarros, bebidas e combustíveis concentram os maiores índices de inadimplência fiscal. Para Lorena Dacier, esse recorte setorial é pertinente. “Esses setores são altamente tributados e envolvem margens expressivas. Empresas que se aproveitam da inadimplência para praticar preços predatórios podem acabar excluindo concorrentes que operam regularmente. O projeto, ao prever regimes especiais e sanções específicas, pode reequilibrar a competição nesses mercados”, analisa.
O advogado Carlos Gouveia faz um alerta sobre as medidas previstas como suspensão de benefícios fiscais, restrição a convênios públicos e até decretação de falência. “Esse é um tema extremamente delicado e que pode gerar certa judicialização. Por um lado, há sim o dever de o Fisco atuar de forma diferente em relação ao devedor contumaz, adotando medidas que possam sanar essa situação e, inclusive, impedir a sua prática. Contudo, também não são permitidas certas restrições, como suspensão de benefícios fiscais, na medida em que podem impedir até mesmo a atividade empresarial dos contribuintes. Sabe-se que em matéria de direito tributário as sanções políticas, que são medidas adotadas pelo Poder Público como forma de coagir, indiretamente, os contribuintes a adimplir suas obrigações fiscais, não são admitidas”, analisa.
Bernardo Quezado, no entanto, destaca a importância de evitar que regimes especiais se tornem fatores anticompetitivos. “A aplicação seletiva e proporcional dessas medidas é essencial. Empresas regulares, que operam com margens reduzidas, não devem ser penalizadas injustamente”, diz ele.
CADE
Em relação à possibilidade de atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no tema, Nathalie Frias é cautelosa.
“Embora o CADE possa analisar práticas tributárias sob a ótica da concorrência, sua atuação deve se restringir a casos em que houver efeitos efetivos sobre o mercado. Não cabe ao órgão fiscalizar condutas fiscais em si, mas avaliar se elas resultam em infrações à ordem econômica”, afirma.
Sobre o risco de interpretações equivocadas por parte do Fisco na aplicação do conceito de devedor contumaz, atingindo empresas que não geram desequilíbrio concorrencial, Lorena Dacier diz que esse risco “é muito maior atualmente, sem um cenário legislativo específico para o assunto”. Para ela, com o PLP 164/2022, “a atuação do Fisco deverá ser muito mais específica e clara, atuando com maior rigor apenas em face do devedor contumaz, aquele contribuinte que reiteradamente deixa de adimplir suas obrigações tributárias”.
O projeto ainda será analisado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC).
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