Quando a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante assistiu pela primeira vez ao filme Manas, da diretora Marianna Brennand, segurou a mão do delegado Rodrigo Amorim, que se sentava ao seu lado naquela sessão especial em Belém. E precisou secar as lágrimas. Para os dois, o que viam era um retrato fidedigno de situações presenciadas por eles em muitos anos de combate à violência e à exploração sexual na Ilha do Marajó, no Pará.
Manas chega neste final de semana aos cinemas brasileiros depois de uma trajetória bem-sucedida em festivais no exterior, desde a primeira exibição, no Festival de Cinema de Veneza, em setembro de 2024, do qual Marianna saiu com o prêmio GDA Directors Award.
O longa é o resultado de um trabalho de dez anos que nasceu durante um encontro entre a diretora e a cantora Fafá de Belém. "Ela me contou sobre os casos de exploração sexual de crianças e mulheres no Rio Tajapuru. Fiquei tocada, revoltada, e entendi a conversa como um chamado", lembra.
Marianna havia acabado de lançar seu primeiro filme, um documentário sobre seu tio-avô, o artista plástico Francisco Brennand. O seu impulso era de realizar outro documentário. Mas ela percebeu que isso não funcionaria: "Eu precisaria colocar essas mulheres e crianças, que haviam sofrido essas violências tão terríveis, na frente das câmeras. E isso seria fazê-las viverem uma nova violência."
A ficção permitiu que ela ampliasse seus horizontes - a protagonista de Manas é Marcielle (a estreante Jamilli Correa), uma jovem de 13 anos que vive na Ilha do Marajó com o pai, Marcílio (Rômulo Braga), a mãe, Danielle (Fátima Macedo), e três irmãos. Ela cultua a imagem da irmã mais velha, que teria partido após conhecer um homem nas balsas que passam pelo Tajapuru. Conforme amadurece, Marcielle se vê em um beco sem saída - o abuso vem de sua própria casa, mas também está nas balsas que ela idealizava como forma de escapar da violência e da miséria.
"Eu entendi que a ficção me permitiria contar essa história de uma maneira que ela tivesse um alcance muito abrangente, e que eu poderia fazer isso com ética, respeito e delicadeza", diz Marianna.
Para entender com profundidade o tema, Marianna ouviu Fafá de Belém, que sugeriu a ela o contato com a irmã Marie Henriqueta. Aos 64 anos, a freira da Congregação de Nossa Senhora Menina é referência no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes e está há mais de uma década no programa de proteção aos defensores dos direitos humanos.
A relação entre Marianna, a produtora Carolina Benevides e Henriqueta cresceu, e a religiosa teve um papel fundamental como consultora do filme. Por intermédio dela, Marianna conheceu o delegado Rodrigo Amorim, de 39 anos, superintendente da Região do Marajó Oriental, que passou a colaborar com o filme. "A preocupação que eu e a irmã temos é não contribuir com algo que vai desfocar da realidade. Moro no Marajó há 11 anos, sei o que acontece lá."
ÍNDICE
O Estado do Pará tem um dos piores índices de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes do Brasil, com uma taxa de 3.648 casos, bem acima da média nacional de 2.449, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A situação se agrava no Marajó. Em 2023, o governo federal lançou o programa Cidadania Marajó como enfrentamento à exploração de crianças e adolescentes, substituindo o Abrace Marajó, criado pela então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves. Hoje senadora, ela foi acusada pela Procuradoria da República do Pará em 2023 de proferir falas sensacionalistas sobre os crimes contra menores na Ilha do Marajó.
As polêmicas que cercaram o arquipélago nos últimos anos fizeram com que Marianna, Rodrigo e a irmã Henriqueta precisassem desenvolver uma relação de confiança e escuta atenta. A diretora lembra que a dupla esteve presente em uma primeira leitura do roteiro. "Nós nos preocupamos em trazer humanidade para os personagens, e eles eram nossos balizadores", diz.
A colaboração dos dois inspirou uma personagem de Manas, a delegada Aretha, vivida por Dira Paes. Na trama, ela conhece Marcielle quando a jovem tenta fazer um documento de identidade com nome da irmã, e ajuda a menina a entender que está passando por uma situação de abuso. "Tudo que o filme traz me reporta para o que eu faço hoje. Quando vieram as imagens, as cenas na balsa... Eu vivi tudo aquilo", diz Henriqueta.
ESCOLHA
Uma das escolhas de Marianna foi a de não mostrar a violência em tela. "É uma violência que não deveria acontecer, então como vou filmá-la? Resolvi usar o meu lugar como diretora e a oportunidade de dirigir um filme sobre o feminino, sobre violência, sem trazer ainda mais violência."
Para a cineasta, isso não tira a força do filme. "Como que você não sai transformado depois de viver uma experiência ao lado dessa menina, enquanto ela está vivendo uma das maiores violências que uma pessoa pode passar?"
Na divulgação do prêmio em Veneza, o júri disse que Manas conquistou corações ao "abordar com cuidado o tema extremamente sensível e difícil do abuso". "Embora o cenário da Ilha do Marajó ainda não fosse conhecido, a diretora retratou algo tão universal, que cada um de nós poderia se conectar profundamente."
A cineasta vai receber agora o prêmio Women in Motion Emerging Talent, do Festival de Cinema de Cannes, que ocorre até o dia 24 de maio. A premiação é dedicada a talentos femininos emergentes. "Quando escuto uma pessoa agradecer pela delicadeza e sensibilidade de não mostrar a violência, sinto que é o maior reconhecimento", diz a diretora.
Para a irmã Henriqueta, o reconhecimento desse trabalho é uma das coisas mais especiais de ver o filme no mundo. "Eu vim com a gratidão porque finalmente alguém teve a coragem de colocar e estender isso para que todas as pessoas saibam que existem também mulheres e homens corajosos. Enfrentar a violência na nossa região amazônica é também ter a capacidade de dizer diariamente para si: a vida pertence a quem se atreve."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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