Pelo buraco da fechadura

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Miriam Gimenes

O escritor Nelson Rodrigues completaria 100 anos

A narrativa traz a história de uma adúltera que, ao ser flagrada pelo marido, é assassinada a facadas. O algoz arrepende-se no minuto seguinte e, ajoelhado, pede perdão. A história, muito bem construída, poderia ser atribuída a qualquer autor conceituado. O que chama a atenção na prosa, no entanto, é que os parágrafos foram idealizados por um garoto de 9 anos – ‘ pequenino e cabeçudo’, como se definiria no futuro – para um concurso de redação da classe na escola pública Prudente de Moraes, no Rio de Janeiro. O episódio marcou o que pode ser considerada a estreia da trajetória genial, polêmica e transgressora do escritor, dramaturgo, cronista e jornalista Nelson Rodrigues (1912-1980), que completaria 100 anos no dia 23. “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”

O mesmo garoto que escandalizou as professoras da 4ª série primária foi quem guiou o marmanjo, como o próprio Nelson disse, durante toda a sua existência. “O adulto não existe. O homem é um menino perene.” O pernambucano, que sofreu a vida toda de tuberculose, morreu aos 68 anos por complicações cardíacas e respiratórias. Mas nem por isso o seu legado – que compreende 17 peças teatrais, nove romances, cinco livros de contos, 13 de crônicas e adaptações para cinema e televisão – foi enterrado com ele no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Suas obras, assim como a personalidade peculiar, são revolucionárias, hiperbólicas, marcantes, ácidas, bem-humoradas, polêmicas e incrivelmente contemporâneas. As palavras, muito bem colocadas dentro dos textos, são as responsáveis por manter seu coração pulsando firme e forte dentro da história da cultura brasileira.

Nelson, o quinto de 14 irmãos, mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro por problemas políticos envolvendo seu pai, o ex-deputado federal e jornalista Mário Rodrigues. O patriarca foi o primeiro a desembarcar na Cidade Maravilhosa. Tempos depois, sua mulher, Maria Esther, veio de mala e cuia com a prole. A primeira residência ‘oficial’ da família foi na Rua Alegre, 135, bairro Aldeia Campista, Zona Norte. E foi nas características dos vizinhos que o pequeno Nelson começou a se inspirar para escrever a tão famosa primeira redação. “Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro”, dizia ao lembrar a feição das professoras quando leram seu texto, que só não foi ganhador do concurso em razão da incompatibilidade do tema com a educação infantil.  Sem saber, o autor arrancaria mais tarde a mesma incredibilidade do público, principalmente com suas peças teatrais.

Voltemos ao pequeno. O precoce escritor começou a trabalhar como repórter policial aos 13 anos. E não pense que as reportagens eram redigidas de forma sucinta, imparcial e objetiva como hoje, sem rodeios. Era época de quase ficção e Nelson, aficionado por crimes passionais e histórias de adultério, usaria esses personagens da vida real para desenrolar seus enredos. O garoto, que até então era retraído e leitor voraz de livros, encontrava na vida alheia o tempero para seus primeiros e já primorosos textos. Todos sempre vistos pela ótica pequena – porém, eficiente – do buraco da fechadura.

A VIDA COMO ELA FOI

Para a infelicidade dos Rodrigues, um assassinato mudaria para sempre a vida da família, principalmente a de Nelson. Ele, que já trabalhava no jornal sensacionalista A Crítica, de seu pai, junto com os irmãos Milton, Mário Filho e Roberto Rodrigues, presenciou a morte deste último – o seu, digamos, porto seguro – na própria Redação. Roberto foi vítima de Sylvia Serafim, mulher que um dia antes havia sido manchete do jornal em razão do suposto fim de seu casamento com João Thibau Jr. Revoltada, principalmente por ter pedido para que não publicassem a notícia, ela entrou na redação do jornal decidida a acabar com a vida de Mário Rodrigues. Como não o encontrou, tratou de dar fim à vida de um dos filhos dele, Roberto. Nelson assistiu a tudo de camarote.

Mário não aguentou a tragédia e, deprimido com a perda do rebento, faleceu tempos depois. O jornal também não demorou muito a falir, o que deixou a família em péssima situação financeira. Desde então, a temática trágica jamais sairia dos textos de Nelson, que também passou pela redação de O Globo, Diários Associados e Última Hora. Neste último, lançou a coluna de crônicas que seria seu maior sucesso jornalístico: A vida como ela é... Tanto que virou série de televisão exibida pelo Fantástico em 1996. Prova de que ninguém soube retratar o cotidiano com tanta veracidade quanto o ‘anjo pornográfico’.

Após os problemas financeiros e já restabelecido, Nelson casou-se com Elza, com quem teve dois filhos: Joffre (nome em homenagem ao irmão que morreu ao contrair a tuberculose do escritor) e Nelson Filho. O primogênito faleceu em 2010 e Nelsinho, como é conhecido, lembra-se ainda hoje da doçura do ‘Velho’ – como o chama carinhosamente. “Meu pai era como uma cambaxirra: pássaro bem pequeno e muito doce com todos. Ele deixava o seu lado mais forte para os personagens, onde poderia ter seus arroubos.”

Nelsinho é diretor e responsável por adaptações das peças do pai. A convivência dos dois só ficou boa após o filho ser preso – ele era guerrilheiro do MR-8 e o pai apoiava a Ditadura Militar. “Era uma relação antagônica. Tomamos partidos diferentes em relação à vida. Depois da minha prisão, fui morar com ele e conversamos muito sobre sua obra”, diz Nelsinho, que participará de uma série de homenagens ao centenário do pai no Rio de Janeiro e em outros lugares do País. Uma delas é a Ocupação Nelson Rodrigues, que acaba de sair de São Paulo e segue para Recife, além da gravação de um documentário. Ele adianta que também será apresentada no dia 28 de dezembro, no Theatro Municipal do Rio, a peça Vestido de Noiva, obra que inaugurou o teatro brasileiro moderno e a mais famosa de Nelson.



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