Meu bem, meu mal

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Erica Gonsales

Ecstasy pode desencadear paranóia em predispostos. Fotos: sxc.hu/Divulgação.

Sozinha na sala de cinema, me senti transportada para dez anos atrás. As imagens de Paraísos Artificiais, filme que estreou em maio deste ano, lembraram um tempo em que minha vida esteve muito próxima daquela realidade de sexo, drogas e música eletrônica. De fato, fiz parte daquilo, só não de forma tão intensa. Frequentei raves, festivais e clubes noturnos – inclusive trabalhei durante seis meses em um deles. Tomei ácido e ecstasy algumas vezes. Vi amigos e conhecidos ingerindo vários tipos de sintéticos. Assim como no longa-metragem em cartaz. Ao contar uma história de amor que se passa no início dos anos 2000, justamente quando a cultura da música eletrônica se popularizava no Brasil, Paraísos Artificiais reacendeu uma discussão que continua pertinente: o consumo de drogas sintéticas. No filme (assim como na vida real), há quem curta a viagem dos efeitos de um doce (LSD) ou uma bala (ecstasy) sem problemas. E há quem sofra as consequências pelo resto da vida, transformando o suposto éden em inferno real.

 
Para gravar o longa, o diretor carioca Marcos Prado frequentou muitas raves no Brasil e no Exterior, e se entregou a uma intensa pesquisa sobre este universo. Logo no início da trama, a Dj Erika (Natalia Dill) chega com sua parceira Lara (Lívia de Bueno) a um grande festival a céu aberto, com ares de Woodstock, em uma praia de Recife. O local se chama Sangri-la e é inspirado no maior evento de cultura alternativa que acontece no Brasil, o Universo Paralello. Atualmente com sede na praia de Pratigi, na Bahia, o festival real se parece bastante ao retratado por Prado na ficção. A festa dura sete dias sob o sol do Nordeste e ao som quase ininterrupto de música eletrônica. 
 
Estive de passagem em uma edição da Universo Paralello em Trancoso. Meu namorado, na época, tinha uma turma de amigos fanáticos por raves e fomos encontrá-los para a noite da virada do ano de 2001 para 2002. Eles queriam ir para a rave bem tarde, por volta das 4h, e dormiram até praticamente meia-noite. Na verdade, não estavam ligando para comemorar o Ano-Novo. De manhã, fui ao festival e os encontrei ‘loucos’ de ecstasy, dançando sistematicamente na praia. 
 
O efeito do ecstasy (hoje mais chamado de MDMA, seu princípio ativo) acontece por fases: primeiro, dá um desconforto danado, ansiedade, náusea, taquicardia. Isso dura um tempinho, até que você começa a se sentir leve e tudo à volta fica diferente; ganha filtro de suavidade. O comprimido já foi apelidado de droga do amor porque realmente você é tomado de um grande afeto por todos. Dá vontade de tocar e abraçar seus amigos e parece que, enfim, você sabe o propósito da vida. Só que na composição da droga também há anfetamina, que deixa o usuário eufórico, com o coração acelerado. A temperatura do corpo aumenta sem que você perceba e é aí que mora o perigo. “As drogas sintéticas procuram especializar-se na produção de algum efeito em particular. O ecstasy, por exemplo, produz euforia prolongada, reduzindo a sensação de cansaço e fadiga, e causando eventualmente alucinações ou sensações de perseguição, as chamadas psicoses”,  explica Guilheme Messas, psiquiatra da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do projeto Psicose e Drogas do Centro de Tratamento Bezerra de Menezes, em São Bernardo. Para quem tem predisposição a crises de pânico, como é o meu caso, a probabilidade de o MDMA desencadear uma paranoia incontrolável é imensa. Aconteceu comigo mais de uma vez.
 
Em uma das edições do extinto festival Skol Beats, no Anhembi, tomei um comprimido de ecstasy e logo comecei a sentir os efeitos da fase ruim da droga. A náusea e a taquicardia sentidas no primeiro momento tornaram-se, na minha cabeça, indício de que algo estava muito errado comigo. Minhas mãos suavam, minhas pernas formigavam, me faltava o ar e meu coração saía pela boca. Achava que podia morrer. Pedi que me levassem à enfermaria o mais rápido possível. Nestes festivais, sempre há uma equipe médica preparada para receber pessoas sob efeito de algum entorpecente, pois eles sabem que boa parte do público está consumindo. Uma enfermeira – que me pareceu um anjo salvador – logo perguntou o que eu havia tomado. Mediu minha pressão, me colocou uma máscara de oxigênio e disse que nada de grave estava acontecendo. Era nada mais que o efeito da droga, que tinha desencadeado uma crise de pânico e seus efeitos físicos. O mais irônico é que, passado o susto, ainda senti os efeitos prazerosos e curti o resto da festa. 
 
O organizador da Universo Paralello, DJ Swarup, defende que a maioria dos atendimentos médicos no festival nada tem a ver com o consumo de drogas. “Quando eu faço a Universo, para público de 10 mil pessoas, meu posto médico registra 900 casos, sendo que 750 são de machucado, gripe – nada a ver com droga. Os outros 150 são de excessos, mas pode-se dizer que 135 são de álcool. Uma festa de axé ou de sertanejo tem muito mais problemas. As pessoas têm uma visão muito negativa das festas de música eletrônica.”
 
FÓRMULAS MÁGICAS
O ecstasy é atualmente a droga sintética mais consumida no Brasil. De acordo com a Polícia Federal, as apreensões aumentaram 100 vezes em dez anos. Segundo o último Relatório Mundial sobre Drogas das Nações Unidas, de 2011, 3,9% dos estudantes universitários tomam MDMA, sendo a maioria homens entre 18 e 24 anos. A mesma pesquisa revela que, analisando o uso da droga em nível mundial, apenas 0,2% da população é consumidora. No ano passado, foram tirados de circulação mais de 209 mil comprimidos de ecstasy, um aumento significativo em relação aos 2.740 apreendidos em 2010.
 
Mas, além do ecstasy, há uma série de outras substâncias ainda pouco conhecidas que vêm preocupando as autoridades. As drogas sintéticas, produzidas em laboratório, têm se diversificado, imitando muitas vezes os efeitos de entorpecentes ‘naturais’ como a maconha e a cocaína. Ainda segundo o Relatório Mundial sobre Drogas, enquanto os mercados globais de cocaína, heroína e maconha diminuíram ou se mantiveram estáveis, a produção e o abuso de opioides de prescrição e de novas drogas sintéticas aumentar


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