Na casa de Marieta

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Raquel de Medeiros

Atriz procura viver a vida sempre com muita alegria. Foto: Daryan Dornelles.

Em frente à janela da sala dela é possível ver o Cristo Redentor e outros cartões-postais do Rio de Janeiro, como o Pão de Açúcar e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Olhando para dentro, artesanato popular entre mesas e prateleiras, como obras da mineira Dona Izabel, as preferidas da atriz. Não é preciso luz, já que as janelas iluminam tudo. Em uma das mesas, um bolo de fubá recém-saído do forno e um bule com café, quentinho, estavam à espera da equipe de reportagem. Acolhimento e alegria são sensações impossíveis de não se sentir na casa de Marieta Severo. Talvez porque sejam duas qualidades da própria moradora, acostumada a ver a vida com os olhos do otimismo. “Sou uma pessoa muito animada com a vida. Não é que esteja tudo sempre bem. Também tenho minhas zonas sombrias, minhas inseguranças e dúvidas. Tenho minha lama, mas chafurdo cada vez menos e fujo cada vez mais dela.”

 
Lá no início de tudo, quem diria, Marieta sonhava mesmo em ser bailarina. Dedicou-se ao balé clássico até os 13 anos. Quando finalmente faria o exame para elenco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o pai brecou. “Achou que eu era muito criança e ele não conhecia o ambiente artístico. Então, se assustou um pouco. Parei o balé clássico e tirei da cabeça a história de ser bailarina, depois de ficar danada com meu pai.”
 
Talvez por isso, nessa época tenha se apaixonado pelo poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, que questionava a capacidade do homem em transformar os sonhos em realidade. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”, dizia o poeta português. Naquele tempo, quando Marieta lia os versos estirados na parede do quarto, nem imaginava tudo o que a vida estava guardando para ela. Também não sabia que, em vez de viver apenas um sonho, experimentaria muitos, e todos na mesma vida. 
 
‘VIDA LEVA EU’
“Deixa a vida me levar. Não é assim que canta Zeca Pagodinho?”, diz Marieta. E foi assim que ela encarou todos os desafios do caminho. Sem muitos questionamentos. Sem a companhia doída da angústia. Confiou e seguiu. E a vida levou. Transferida de colégio, foi estudar, coincidentemente, em frente à escola de teatro Tablado. Começou a frequentar o lugar por convite de amigos. “Sabe aquela coisa de gente jovem, ‘passa aí’?” Ela foi. Andando pela sala, ficou fascinada pelos figurinos, mas não tinha o sonho de se tornar atriz. Só que a vida foi a empurrando, tudo por acaso. “Eu não queria ser atriz, fui sendo atriz. Se tivesse ficado na Tijuca, com certeza teria sido outra coisa.”
Difícil imaginar Marieta em outra função. Seria o quê, afinal? Ela não sabe. “Não sei fazer mais nada. As minhas mãos são inúteis. Não tenho talento, mas adoraria tocar instrumentos, saber pintar, desenhar. Adoraria uma atividade solitária. Fico com inveja de quem pode exercer sozinho.”
 
DITADURA
Em 1968, um pouco antes do AI-5 ser decretado, Marieta dava vida a um dos seus primeiros grandes papéis no musical Roda Viva, espetáculo idealizado por Chico Buarque – seu marido na época – e que criticava duramente o regime político. Apesar de a ditadura já estar instaurada e de a peça ser um tanto polêmica, ainda era possível criticar. A atriz nunca fez parte de nenhum grupo armado, mas era impossível não se envolver na luta pela democracia de alguma maneira. Estudantes, artistas e profissionais liberais se manifestavam nas ruas. Líderes estudantis também organizavam reuniões no Teatro Princesa Izabel. 
 
“De 1964 a 1968 ainda se vivia um clima mais tranquilo. A repressão era muito mais leve. A partir de dezembro de 1968 é que a coisa engrossou mesmo: uma ditadura mais violenta, mais truculenta.” A formação política ocorreu por influência do pai. “De esquerda a gente sempre foi. Eu  trazia isso de casa, do meu pai. Ele era presidente de uma associação de estudantes.”
 
Marieta casou-se muito nova, aos 20 anos. E por causa do ativismo de Chico Buarque, teve de seguir de novo por um caminho que não havia planejado para si. Em 1969, mudou-se para a Itália, grávida e sem dinheiro. “Era uma época muito difícil. Exílio nunca é fácil. É bom viajar quando você quer viajar e morar onde você quer morar. É a questão de liberdade de escolha, que é fundamental na vida, princípio básico. E a gente ficou lá fora porque não podia voltar.”
Além da saudade da família e da cidade que ela ama – o Rio de Janeiro –, sentia falta dos hábitos e da comida brasileira. “Lembro que queria muito comer feijão.”
 
LONGE DE CASA
Foi em Roma que Marieta deu à luz a primeira filha, Silvia Buarque. E mesmo contra as indicações médicas, teve de permanecer por lá. “O enxoval dela estava todo aqui, no Brasil. O meu obstetra também. Por ordem médica, eu só podia ficar fora 20 dias. Mas daí Caetano e Gil foram presos e a coisa começou a engrossar muito.”
As notícias que vinham do Brasil não eram nada boas. Muita gente sendo presa e torturada. “Era angustiante. E a gente vivia de notícias. Não desligávamos do nosso País.” Mas o AI-5 continuava impondo ações violentas e rigorosas no Brasil, e eles não tinham outra opção a não ser esperar. “Ficamos lá por um ano e meio, mais ou menos. As pessoas falavam ‘não voltem, não voltem’, porque se voltássemos o Chico seria preso. Então,  resolvemos ficar, contra a vontade. A gente não queria ficar! Não tínhamos nem grana para ficar. Foi uma revolução na nossa vida.”
 
Mas Silvia veio para ajudar. Apesar das novas tarefas para a mãe de primeira viagem, o nascimento foi um motivo de alegria naquela vida virada de cabeça para baixo. “Desse pedaço mãe, eu só lembro de encantamento, de estar ali, de ver minha filha e achá-la linda”, derrete-se.
 
Na volta ao Brasil, Marieta continuou convivendo com as consequências da ditadura. Ficou mais de dez anos fora da televisão, firme ao lado do mar


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