Cacique de todas as tribos

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Heloisa Cestari

Andrea Iseki
Carlinhos: orgulho no tapete vermelho

“O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada...” Ouvida agora, a canção Brasil Pandeiro, que ecoou País afora no ritmo dos ‘novos’ baianos da década de 1970, soa algo profético. Ainda não foi desta vez que o País levou um Oscar. Mas a indicação à estatueta de melhor canção original deixou claro que essa gente bronzeada tem o seu valor. Em parceria com o pianista fluminense de Niterói Sérgio Mendes, o multitalentos soteropolitano Carlinhos Brown esquentou os pandeiros, iluminou os terreiros, botou os americanos para sambar ao som da música Real in Rio, única concorrente dos Muppets, e foi recebido com festa no aeroporto de Salvador. “Valeu muito. É uma honra estar aqui representando o Brasil. A vida nos oferece oportunidades e a melhor é a de me sentir amado pelo meu País”, disse o baiano em seu Twitter após a cerimônia.

Tudo começou em 2010, quando Brown embarcou para os Estados Unidos a fim de conhecer os produtores da Fox Filmes. “Precisamos muito de uma festa na floresta na hora em que o passarinho cai da árvore”, disse na ocasião o big boss da Fox, John Powell. O líder da Timbalada não teve dúvida: apontou para a boca e fez um pio de caça abatida. “Não sou bom de inglês, mas eles disseram amazing e eu logo entendi que tinham gostado.” Passou, então, a emitir sons de cuíca, surdo, caixa, tamborim... toda uma escola de samba apenas com os lábios. Inspirado nos barulhos da antiga floresta do Candeal e nos passos da filha Cecília, “que já nasceu na ponta dos pés”, Brown compôs Ararinha e outras sete faixas da trilha sonora de Rio.
E essa não é a primeira vez que usa o molho da baiana para melhorar o prato da sétima arte, com ou sem o reconhecimento do mainstream. Em 2005, recebeu o prêmio Goya, concedido pela Academia de Cinema da Espanha, pela canção Zambie Mameto, do documentário O Milagre do Candeal.

De florestas e milagres sociais, aliás, esse baiano arretado entende bem. Aos 49 anos, Brown lembra com riqueza de detalhes os tempos da ‘velha infância’ no bairro do Candeal, quando a vegetação perdeu espaço para o freezer. “Antes da geladeira, a gente não passava fome. Sempre tinha abóbora, batata, inhame. Na minha época havia pés de cajá, jaqueiras, muita traíra e cambota, que os suíços trouxeram para comer as carpas. Ainda quero escrever um livro sobre isso, chamado A Morte da Despensa.”
Para evitar que os sem-floresta sucumbissem de fome, buscou na arte o alimento para a alma e transformou o Candeal em celeiro de artistas, de esperança. Com a Timbalada, plantou a semente de um novo dia, que beneficiou número tão grande de jovens que a favela tornou-se pequena para o grupo. Os ensaios madrugada adentro dos dezenas de percussionistas passaram a incomodar a classe média dos edifícios de Brotas, lá no alto, e Brown teve de transferir a turma para o bairro do Comércio, onde arrendou um casarão em ruínas e fundou o Museu du Ritmo.

Mas o milagre do Candeal permanece em projetos sociais como o Pracatum, cuja escola de música atende 500 alunos por dia a custo zero. O programa inteiro inclui aulas de português e inglês, escola maternal para 280 crianças e assiste cerca de 5.400 famílias com reabilitação e saneamento. “Há muitas coisas que o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) pode fazer, porque ainda não conquistamos, mas também há várias outras com as quais o governo não precisa mais gastar porque já estão feitas, como escolas, esgotos e 1.500 unidades habitacionais.”


Isso sem falar na Timbalada, o grande xodó de Brown. Em quase 21 anos de história, cerca de 20 mil músicos passaram pelo grupo. “Tem uma menina que está no Balé Bolshoi. E há vários parceiros entre os top. Pessoas que passaram pela Pracatum e que depois tocaram com Björk, Ricky Martin e tantos outros”, orgulha-se.
Também foi o caldeirão de influências chamado Candeal que transformou Brown em um dos mais polivalentes artistas da atualidade. Na época, o local já abrigava um retiro franciscano, asilo, centro de tratamento para pessoas com transtornos psíquicos e até claustro carmelita onde, segundo as más línguas, uma rainha da Europa vivia enclausurada. “O Candeal sempre foi um centro ecumênico espiritual que juntou terreiros, protestantes, kardecistas, católicos. E antes de tudo isso, é o terceiro lugar no Brasil e na Bahia a se botar uma pedra para cultuar orixás – chamada ogunjá. Então, existe todo um pensamento sofisticado de tribalização que me acompanha desde criança, porque o bairro já tinha essa vocação de acolher pessoas, de miscigenação. Meu próprio avô era médium, de origem italiana, e cuidava de pessoas”, diz o músico, sem esconder o melindre de bastardia herdado de outra parte da família, os renomados Teixeira de Freitas. Quando descobriu que seu bisavô era João Alves Teixeira de Freitas, um dos maiores juristas do Brasil, Brown passou a conversar com a estátua do ilustre familiar, que ficava na parte externa do fórum de Salvador. “Um dia botaram ela pra dentro e eu fiquei desesperado. Queria entrar, mas não podia porque era criança. Dizia que era meu avô e ninguém acreditava. Mas, por mais que eu tenha chegado abaixo da linha da pobreza, isso não diminuiu o meu desejo de sonhar e de ser vitorioso pela honestidade.”

Brown é o mais velho dos nove frutos do casamento entre a lavadeira Madalena Gonçalves dos Santos e o boêmio tocador de maracas Renato Teixeira de Freitas Filho. Muito dos merengues e arranjos caribenhos de Carlito Marrón – como é conhecido na Espanha e América Latina – preservam a influência do pai rumbeiro.
Tem muito de Caribe e de Carybé. Assim como o artista plástico argentino radicado na Bahia, Brown enfatiza a miscigenação das Américas e retrata a cultura do povo baiano como poucos. “O Brasil precisa se reconhecer como nação miscigenada; ter uma ética sobre a etnia. E quando digo ética estou me referindo a oportunidades.” Critica a figura preguiçosa do personagem Macunaíma na obra de Mário de Andrade e recorre à arte dos modernistas Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral para mostrar como deve ser o olhar “miscigenado” de um artista que se reconhece nas raízes afro-indo-brasileiras tal qual um Abaporu na antropofágica tentativa de devorar as influências externas para regurgitar algo novo e genuinamente brasileiro.

Brown é a personifica



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