Doce pimenta

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Miriam Gimenes

Banco de Dados

Comoção durante o enterro de Elis, em 1982. Foto: Banco de Dados

Elis Regina sobe ao palco e deixa a plateia emocionada com o show Falso Brilhante. O sucesso da cantora atinge o apogeu. O espetáculo fica mais de um ano em cartaz – com 300 apresentações – e torna-se um dos mais bem-sucedidos da história nacional. Corta. Janeiro de 1982. Elis fala ao telefone com o namorado Samuel Mac Dowell de Figueiredo. Após árdua discussão e as pazes, sua voz esmorece, parece pedir ajuda. Silencia. Desespero. Caída em seu quarto, é levada já sem vida ao hospital. Cheia de altos e baixos, a trajetória de uma das maiores cantoras do País foi interrompida, há exatas três décadas, em razão de uma mistura fatal: bebida alcoólica e cocaína. A ‘Pátria mãe gentil’ chorou, mas não esqueceu a Pimentinha, que ainda reina absoluta na música popular brasileira. 

A ‘conquista do império’ começou em seu Estado natal, o Rio Grande do Sul. Em 1959, aos 14 anos, Elis foi anunciada pelo animador de auditório Maurício Sirotsky e levou os espectadores da Rádio Gaúcha ao delírio. “Ela entrava com ar infantil, vesguinha, perna torta, caminhando de pés virados para dentro, muito insegura. Quando começava a cantar, porém, tomava conta da plateia”, disse Sirotsky em entrevista à Veja. Não demorou para sua voz ecoar nos quatro cantos do País. 
Tanto que a mãe, dona Ercy, declarou que perdeu a filha aos 19 anos, quando a jovem mudou-se para o Rio de Janeiro a fim de engrenar a carreira. Foi então que a face doce de Elis começou a ceder espaço para a ardida. E não demorou para ganhar a alcunha de Vinicius de Moraes – da qual não gostou nem um pouco, diga-se de passagem. Em seus breves e intensos 36 anos de vida, além do status de estrela, a cantora consolidou a imagem mítica marcada ora pelo sabor açucarado, ora picante. “Decifra-me ou devoro-te? Não vai me devorar, nem me decifrar nunca. Eu sou a esfinge, e daí? Nesse narcisismo generalizado, me dá licença de eu ser narciso um pouquinho comigo mesma? De fazer comigo o que bem entender, ser amiga de quem quiser, de levar para a minha casa as pessoas de quem eu gosto? Bem poucas pessoas vão conhecer minha casa. Sou a Elis Regina Carvalho Costa, que poucas pessoas vão morrer conhecendo.” 
Desfrute a seguir as peculiaridades da saudosa estrela ‘escrita’ por quem teve a sorte de entrar em sua intimidade. Oportunidade que, como ela mesma disse, foi concedida a poucos.
 
'Sou a Elis Regina Carvalho Costa, que poucas pessoas vão morrer conhecendo.' Foto: Banco de Dados
HOSPEDAGEM PREMIADA
Raimundo Fagner, cantor e compositor, foi um dos únicos a quem Elis deu teto. Após quase se desiludir com a música porque não conseguia emplacar suas canções, foi apresentado à cantora por Roberto Menescal, em 1972. Além de incluir as criações dele ao show – Mucuripe, Cavalo Ferro, Moto 1 e Noves Fora –, a Pimentinha o deixou morar em sua casa à época que estava casada com o compositor Ronaldo Bôscoli. Foi um divisor de águas em sua carreira porque, a partir de então, ganhou notoriedade e passou a ser cobiçado por outros cantores. 
Fagner lembra que Elis era muito carinhosa. Caso contrário, não o teria levado para dentro de casa, onde ficou por cerca de seis meses. Como o relacionamento entre a cantora e Bôscoli estava em seus suspiros finais, Fagner, após seis meses, teve de procurar outra morada, mas nutre devoção eterna à cantora. “Ela foi de uma luz extraordinária. É uma pena que há 30 anos estamos privados de ver a maior cantora de todos os tempos”, lamenta, acrescentando que, embora fosse pequena – media 1,53 metro –, no palco virava uma gigante. 
Assim como fez com ele, Elis foi determinante na carreira de diversos nomes da MPB, a exemplo de João Bosco, Milton Nascimento, Ivan Lins e Edu Lobo. “Ela estaria muito bem hoje, revelando gente nova, seria sempre o diferencial da música”, acrescenta. Esse quê a mais, como Fagner mesmo diz, vinha de seu ouvido ímpar para uma boa letra, do perfeccionismo extremo, da exigência exacerbada e do primor pela qualidade – o que, muitas vezes, não era entendido pela maioria. Além, é claro, da sua premissa de sempre falar a verdade, não importasse a quem fosse. 
O cantor Jair Rodrigues, que trabalhou três anos diretamente com ela no programa Dois na Bossa, sucesso da Record, também ressalta essas vertentes de Elis. E diz mais: “O público não a conhecia. A Elis mulher, a artista, a Elis dedicada eram uma coisa extraordinária.” Jair lembra que ela ficava o dia todo ensaiando e, mesmo com tudo afinado, marcava novamente ensaio para o dia seguinte, o que irritava os músicos. Tinha gana de ser a melhor. “Só não chegou à perfeição porque o perfeito morreu na cruz”, conclui. 
Ambos sentem falta inestimável da parceira, tanto pessoal quanto profissionalmente. Para saná-la, Jair revela que, vez por outra, recorre ao seu acervo de discos, que contém quase toda a obra de Elis. Só ouvindo sua voz, que permanece viva nas músicas, para aplacar a saudade da amiga de palco e de vida. 
 
MINHA VIDA EM TUAS MÃOS
Oito ou 800. É assim que a jornalista Regina Echeverria, biógrafa e amiga de Elis, define a cantora. Os altos e baixos foram as vertentes que a conduziram no livro Furacão Elis, que já está na quarta edição – a última lançada no mês passado pela Editora Leya. “Ela tinha talvez a mesma grandiosidade e intensidade do palco na vida.” O convite para escrever a biografia surgiu logo após Regina redigir a reportagem da morte de Elis, à época capa da revista Isto É.
A jornalista lembra, como se fosse hoje, do fatídico dia. Estava nos bastidores de uma emissora de televisão, assistindo à gravação de um programa, quando uma colega avisou-lhe da morte de Elis. Com o coração apertado, veio para São Paulo a mando do diretor da revista, Zuenir Ventura, para fazer a cobertura, junto com o


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