Superação nos palcos

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Miriam Gimenes

Foto: Thiago Justo
Primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro comemora 35 anos de carreira com muitos motivos para festejar. Foto: Thiago Justo

Ana Botafogo não anda, levita. Não fala, sussurra. Não dança, inebria. Embora não tenha passado de 1,60 metro de altura, ela se agiganta assim que veste a sapatilha de ponta e desenha seus pirouettes e sous-sous no tablado. Tudo na mais absoluta leveza, a mesma que tomou como lema na sua trajetória, marcada também por perdas irreparáveis. “Resolvi que não ia brigar mais com a vida e ela me trouxe momentos muito bons.” Tão bons que a palavra de ordem neste ano foi comemorar 35 anos de carreira muito bem aproveitados – dançando – e as três décadas como primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. E enquanto a corda não parar, como versou Toquinho em A Bailarina, ela não vai deixar de bailar.

Sua caixinha de música foi aberta quando era criança. Pelas mãos da mãe, estudiosa da dança, ensaiou pela primeira vez os passos de bailarina clássica. Ainda que os atributos físicos não acompanhassem a vontade de se tornar profissional – tinha pé chato, não conseguia curvá-lo como se deve para o balé e a elevação da perna também era insuficiente –, Ana trabalhou de modo que o corpo se moldasse à profissão.

Mas não pense que os obstáculos foram poucos. Bailarina sofre tanto fisica quanto psicologicamente e Ana faz questão de deixar bem claro. Mas isso é tão menor que a carioca escolheu o clássico Marguerite e Armand, o último que quis protagonizar, para brindar o sucesso de sua carreira. “Quando olho para trás vejo que tive trajetória muito ativa, cheia de espetáculos, criações. Estou mais do que feliz.”

Seria surpreendente se a bailarina falasse o contrário. Sua carreira foi singular. Ana passou por academias da Europa, como a Goubé, na Sala Pleyel, em Paris, a Academia Internacional de Dança Rosella Hightower, em Cannes, e o Dance Center-Covent Garden, em Londres. Na França, no Ballet de Marseille, tornou-se profissional sob a tutela de Roland Petit, um dos coreógrafos mais famosos do balé mundial.

Mas ela teve de voltar ao Brasil para ter suas maiores alegrias. A principal foi tornar-se a número um do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1981, onde angariou conhecimento para bailar nos grandes espetáculos. Usou a dança para conduzir a vida e, com ela, ganhou destaque dentro e fora dos palcos.

Por conta dos delicados passos, recebeu inúmeras homenagens e títulos, como Embaixatriz da Cidade do Rio de Janeiro e Benemérito do Estado. Em 1997, o governo francês a nomeou Chevalier Dans L'Ordre des Arts et des Lettres (condecoração para quem promove trabalhos em artes e letras). Dois anos depois, o Ministério da Cultura do Brasil lhe concedeu o Troféu Mambembe, forma de reconhecer o seu  trabalho como bailarina e divulgadora da dança em todo o território nacional. De uma faísca de paixão pelo clássico, Ana ateou o fogo que se  alastrou por todo o País.

 
PAS DE DEUX

Executar coreografia perfeita (sem rupturas, passos redondos, dança linear) não é o único atributo de Ana Botafogo. Com sua maestria, conquistada em dias e dias de treino, ela difundiu sua arte não só no Brasil, mas no mundo. “Ana é a mais importante personalidade da dança brasileira. Isso pela conduta, profissionalismo, talento e capacidade de levar a dança clássica a outros horizontes”, diz um dos seus mais importantes companheiros de padede (diminutivo de Pas de Deux), o dançarino e coreógrafo Carlinhos de Jesus. 

Os dois, que se conheceram há mais de dez anos em programa de televisão. Decidiram unir o popular ao clássico e formaram uma das mais importantes e inusitadas duplas do País. Na primeira apresentação, nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, Carlinhos vestia-se de malandro (roupa típica do bairro boêmio) e ela de tutu (traje de bailarina). “Ela fez um chorinho na ponta e eu entrei sambando. Isso ficou gravado na mente das pessoas e na nossa”, relembra. A união rendeu o espetáculo Isto é Brasil, que fez centenas de apresentações em solo brasileiro.

Para o amigo e partner, Ana tirou o balé clássico dos palcos e da elite, levou para a periferia e mostrou que a dança é acessível e a arte está ao alcance de todos. “Ela conseguiu isso por conta de seu talento indiscutível, a magia que exala quando dança. Quando vai para o palco, parece outra mulher”, resume o dançarino.
Essa junção de mundos, citada pelo coreógrafo, foi ratificada quando, convidada para desfilar na Marquês de Sapucaí, sambou em cima da sapatilha de ponta. Como sempre, arrancou aplausos.

Ana mostra-se satisfeita por hoje o balé chegar às crianças menos favorecidas. Cita como exemplo um projeto do qual é madrinha, de Thereza Aguilar, no Rio, chamado Dançando para Não Dançar, que começou com 50 crianças e hoje já conta com 500. “Antigamente me chamavam todo ano para fazer um espetáculo e incentivar os alunos. Hoje não precisa mais porque muitos se profissionalizaram e passaram a ser referência para os menores”, comemora.

 
PRIMEIROS PASSOS


No início, Ana teve de trabalhar muito. E não acredita dispor de diferencial para assumir o posto, há 30 anos, como primeira bailarina do Municipal. “Só teve trabalho, trabalho, trabalho”, enumera. Não toma para ela a responsabilidade de seu sucesso. Divide com diretores e coreógrafos com quem trabalhou, porque “bailarino não se faz sozinho”. 

Admite que começou sem experiência de clássicos e, como representante do Municipal, aprendeu na prática – e na raça – tudo o que sabe hoje sobre a dança. Passou por Londres, Cuba, entre outros países, onde teve experiências inesquecíveis. Ainda assim, hoje, antes de entrar no palco, sente frio na barriga. Como toda bailarina que sustenta superstição, antes de pisar no tablado bate na madeira três vezes e faz o sinal da cruz. “Sou católica, cheguei até aqui com muita fé, perseverança.” Sua religiosidade tem dado certo.

Ana afirma não ser necessário sair do Brasil para atingir a excelência na dança. “Há 30 anos não tínhamos os festivais de hoje. Os professores que se formaram ao longo desse tempo são competentes. Tanto que exportamos muito talento.” E admite sua parcela de culp



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