Momentos de sabedoria com o Dalai Lama

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Heloisa Cestari

Foto: Andréa Iseki
Mais do que líder religioso, Tenzin Gyatso é a personificação da luta por direitos humanos, união entre povos e paz mundial. Foto: Andréa Iseki

“Sou apenas um dos quase 7 bilhões de seres humanos deste planeta”, anunciou Tenzin Gyatso, o 14° Dalai Lama, antes de iniciar entrevista coletiva durante a última estada no Brasil. De fato, quem vê o oriental de fala mansa, túnica vermelha, óculos fumê, viseira e meias, com os sapatos de lado no palco, não imagina que está diante do líder máximo tibetano, considerado pelos budistas a reencarnação de um dos seres mais iluminados que já passaram pelo planeta e aclamado pela comunidade internacional como símbolo da luta pacífica pela união entre povos. Nos dois dias em que acompanhou o monge em São Paulo, a equipe da Dia-a-Dia deparou-se com um homem humilde, descontraído, disposto no alto dos seus 76 anos, disciplinado e, acima de tudo, simples. Provavelmente, muito parecido com o menino de 2 anos que gostava de sentar no ninho e cacarejar com as galinhas enquanto a mãe – dele e de outros 15 filhos – contava os ovos na  vila de Takster, no nordeste do Tibete.

A despeito das inúmeras honrarias que coleciona, entre elas o Prêmio Nobel da Paz de 1989, Gyatso faz questão de colocar-se como apenas mais um, e de quebrar a seriedade com que todos encaram seus discursos com um ou outro comentário bem-humorado. “Nossa! Que espirro alto! Acho que inconsciente, ou conscientemente, eu quis acordar o pessoal que está dormindo na plateia...”, brincou, ao espirrar no microfone que ecoou pelo salão Golden Hall do World Trade Center, na Capital, durante simpósio com cientistas sobre os diferentes estados de consciência. Os espectadores que o ouviam atentamente caíram na risada.

Como uma criança, o Dalai Lama também sabe se divertir com as coisas singelas do dia a dia. Mas bastam alguns minutos de discurso para perceber que sua espiritualidade sobrepõe-se à mera espirituosidade. “Você quer ser feliz? Eu também. Somos iguais. As diferenças de crenças, línguas e nacionalidades são secundárias. Mas é aí que os problemas acontecem, porque é muito mais fácil ficar nas diferenças dos seres do que naquilo que nos une.”

São colocações como essa, simples e ao mesmo tempo profundas, que o tornaram célebre não só entre budistas como no mundo todo. Para ele, a pluralidade de  crenças não é problema, mas solução. “Todas as religiões pregam a mesma mensagem de compaixão, disciplina e perdão. Se houvesse apenas uma religião, ela não funcionaria, porque as pessoas têm conformações mentais diferentes, e aprender um pouco sobre cada religião só pode enriquecer a fé de alguém.”

Não à toa, Gyatso tem trânsito livre em quase todas as doutrinas religiosas. Por várias ocasiões, encontrou-se com o papa João Paulo II. Em 1981, conversou com o arcebispo de Canterbury, Dr. Robert Runcie, e outros líderes da Igreja Anglicana em Londres. E em 1989, durante diálogo com rabinos e acadêmicos nos Estados Unidos, enfatizou que o Tibete tem muito a aprender com o povo judeu – o rabino Henri Sobel, aliás, foi uma das personalidades a engrossar sua plateia no Brasil. “Quando nos tornamos refugiados, sabíamos que nossa luta não seria fácil. Ela levará muito tempo, gerações. Com frequência nos referimos ao povo judeu e à forma como ele manteve a sua identidade e fé a despeito de tamanha privação e sofrimento. Quando as condições externas amadureceram, eles estavam prontos para reconstruir sua nação. Assim, pode-se concluir que há muito o que aprender com os irmãos e irmãs judeus.”

E foi esse discurso multicultural que levou o Comitê Norueguês a conceder-lhe o Prêmio Nobel da Paz em 1989, além do fato de se opor ao uso da violência na luta pela libertação do Tibete. “Ele desenvolveu filosofia de paz com grande reverência por todas as coisas vivas, e um conceito de responsabilidade universal que envolve toda a humanidade e também a natureza”, justificou o comitê, ressaltando que Dalai Lama sempre se empenhou em propor ações construtivas e visionárias para a solução de conflitos internacionais, questões de direitos humanos e problemas ambientais globais.

Mas nem só de feitos grandiosos vive Sua Santidade. “Sou apenas um monge budista”, repete incessantemente. E realmente age como tal. Vive exilado em uma pequena cabana em Dharamsala, na Índia; acorda todos os dias às 4h para meditar; cumpre atribulada agenda de compromissos e, antes do cair da tarde, recolhe-se em prece, buscando inspiração nos versos do santo budista Shantideva: “Enquanto o espaço existir, enquanto seres humanos permanecerem, devo eu também permanecer para dissipar a miséria do mundo”.

Foi essa inata compaixão que o levou a ser reconhecido, ainda aos 2 anos, como a reencarnação de seu predecessor, o 13° Dalai Lama, Thubten Gyatso. Na tradição tibetana, os Dalai Lamas são manifestações do Bodhisattva da Compaixão, ser iluminado que adiou sua entrada no nirvana (espécie de paraíso dos budistas) e escolheu renascer para servir a humanidade.

Para identificá-lo entre milhares de crianças do Tibete, os monges que conviveram de perto com o Lama anterior seguiram pistas. A primeira foi deixada pelo próprio antecessor, cuja cabeça girou misteriosamente da direção Sul para o Nordeste após a morte. Em seguida, o regente interino teve uma visão: mirando as águas do lago sagrado Lhamo Lhatso, no sul do Tibete, viu claramente as letras tibetanas Ah, Ka e Ma flutuando, e a imagem de um monastério de três andares com telhado turquesa e dourado. Finalmente, avistou uma casa pequena com sarjeta estranha. Concluiu, então, que a letra Ah referia-se à província de Amdo e Ka indicaria o monastério em Kumbum, que tinha três andares e telhado turquesa. Não demorou muito para uma comitiva de monges chegar à casa de Tenzin Gyatso, que na época chamava-se Lhama Thondup, tinha 3 anos e logo reconheceu os objetos e colegas de outra vida, chamando-os pelo nome verdadeiro.

No ano seguinte, o garoto foi entronado e, na adolescência, orientado a assumir oficialmente a liderança temporária do Tibete para conter as tensões provocadas pelo avanço das tropas comunistas da China em território tibetano. “Isso me deixou muito aflito. Tinha apenas 16 anos. N&atild



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