A vida pela televisão

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Miriam Gimenes

Foto: Andréa Iseki
Primeira mulher a protagonizar um beijo na TV brasileira dedicou sua vida para perpetuar a história no veículo. Foto: Andréia Iseki

Há seis décadas, Assis Chateaubriand trazia para o Brasil os primeiros aparelhos de televisão. Com a simples conversão da luz e som em ondas eletromagnéticas, os brasileiros visualizavam a imagem transmitida em tempo real por um aparelho que à época só cabia no bolso dos ricos. Milhares de programas, novelas, seriados e filmes depois, o advento tornou-se integrante da família e está em quase 90% das casas brasileiras. Mas muito do que se produziu durante todo esse tempo poderia cair no esquecimento não fosse o trabalho de uma mulher de suma importância na história da televisão: Vida Alves, 83 anos, atriz que protagonizou o primeiro beijo da teledramaturgia nacional.

O episódio – ousado para a década de 1950 – ocorreu na novela Sua Vida me Pertence (1951), com o diretor e ator Walter Foster. Atualmente, Vida é presidente da Pró-TV (Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira) e reúne acervo que compõe o Museu da TV, com 8.000 fotos, equipamentos (como a primeira câmera do Brasil), vídeos, figurinos e 160 depoimentos gravados de pioneiros.

A ideia surgiu em 1995, pouco depois de a atriz ter ouvido nitidamente a voz do amigo e diretor artístico da TV Tupi Cassiano Gabus Mendes, durante o velório dele. “Tive a impressão de escutá-lo conversando comigo. Os religiosos acham que é mais do que isso. Ele dizia: Vida, olha a televisão, veja a escalação.” À época, ela trabalhava na sua empresa de comunicação, mas sentiu saudade imensa do que vivera nas telinhas, embora achasse estar delirando.

Isso a deixou nostálgica. Tanto que, tempos depois, decidiu reunir os amigos do antigo ofício, relatou o episódio e os deixou emocionados. A partir de então, nasceu a Apite (Associação dos Pioneiros da TV), atual Pró-TV.

Vida fez a sede da instituição em sua casa, no bairro Sumaré. Parte do acervo pode ser vista na exposição itinerante 60 Anos da Telenovela Brasileira, promovida pela Rede Globo, e outra parte está na Cidade da TV, dentro da Cidade da Criança, em São Bernardo. A escolha é providencial, já que o espaço abrigou, no fim da década de 1970, a primeira cidade cenográfica de onde foi transmitida a novela que ficou mais tempo no ar: Redenção, da TV Excelsior, que durou dois anos.

O grupo nasceu com a missão impreterível de preservar a história da televisão. “Se ninguém faz isso, ninguém nunca ouviria falar dos artistas que foram famosos no meu tempo, e os que estão hoje cairiam no esquecimento. Por isso, me propus esta obrigação, que mudou minha vida completamente.” De próprio punho, Vida redigiu a biografia de mais de 2.000 pessoas que, junto com ela, ajudaram a construir uma história de seis décadas.

Uma delas é o amigo e também ator Lima Duarte. Ele faz questão de dizer que é fã de Vida, principalmente pelo trabalho dela em prol da categoria. “É uma grande mulher. Depois de tantos anos de lutas, enganos e desenganos, ainda insiste em que sejamos perenizados. Ela merece beijos e abraços por tanta determinação e coragem”, parabeniza. Conheça um pouco mais a história e os pensamentos desta pioneira que, com o perdão do trocadilho, dedica a vida à televisão brasileira.


ARTISTA NATA

A mineira de Itanhandu veio para São Paulo quando tinha 6 anos, após a morte do pai por tuberculose. Ou melhor: foi obrigada a vir. Quem tinha essa doença era marginalizado e parte da sua casa foi queimada para exterminar o vírus. Mas o fogo não matou a paixão da família pela arte, já que o pai fazia parte do grupo de modernistas de 1922 e deixou isso como legado. Tanto que os nomes dos irmãos de Vida, assim como o dela, são inusitados: Helle, Poema, Ritmo e Homem.

Ainda criança, Vida fez papéis como atriz. Mas foi na década de 1940 que assinou o primeiro contrato na Rádio Panamericana. Entre um trabalho e outro, surgiu o teste na Rádio Tupi e quem a avaliou foi o sonoplasta, um tal de Lima Duarte. O ator relata o encontro em tom humorado e descreve os atributos que o levaram a aprová-la. “O que vi nela foram as pernas lindas e uma franjinha (coisa nova para a época) muito engraçadinha. Walter Foster me perguntou: ‘Então, operador, que tal essa garota?’, referindo-se à voz e ao talento, e eu disse a ele, sem nenhum pudor: ‘Muito gostosa’. Bem, eu tinha 18 anos.”

Brincadeiras à parte, a carreira de Vida decolou e ela teve o prazer de ser a protagonista do primeiro beijo técnico que, por conta dos poucos avanços tecnológicos, não possui registro. “Não tenho foto, gravação nem mesmo do meu parceiro, que faleceu. Só tem eu para contar a história”, brinca Vida, que reconhece a importância do crescimento da tecnologia. “Tivemos há pouco a perda desse norte-americano (Steve Jobs) que deu um chute pra frente na comunicação. Há coisas boas na modernidade que estamos vivendo”, analisa. Ainda que exalte os adventos, ela prefere um bom e velho livro, os dois jornais que devora diariamente e as revistas semanais.


AQUELE BEIJO

Voltando ao fatídico beijo, Vida havia se casado há pouco com o engenheiro italiano Gianni Gasparinetti, que trabalhava na construção da torre da TV Tupi. Walter Foster pediu para que ela solicitasse o aval da cena inédita. Conseguiu. Após a marcação sem ensaio, o ‘romance’ saiu, à moda antiga: apenas com o encontro de lábios.

A atriz nem imaginava a importância do acontecimento, mas manteve-se fora dos holofotes nos dias seguintes, para evitar o burburinho. “Não dei entrevistas, fiquei mais na minha casa. Minha vida era bem simples”, lembra. Só que o fato é recordado até hoje como um episódio ousado e precursor para as telenovelas brasileiras. Nas palavras do especialista em teledramaturgia Mauro Alencar, ela foi a primeira mocinha da ficção brasileira.

Ele também ressalta a importância de seu trabalho frente à Pró-TV, porque o Brasil não é um País que prima em cultivar a história. “Sabendo-se que a identidade de um povo é formada por sua história cultural, a iniciativa de Vida Alves só pode ser louvada e incentivada. Afinal, o passado estará sempre ali



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