A primeira-dama dos palcos

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Raquel de Medeiros

Foto: Nário Barbosa
Fernanda Montenegro mergulha na vida de Simone de Beauvoir para a peça Viver Sem Tempos Mortos e reavalia a própria trajetória. Foto: Nário Barbosa

“Tenho a pretensão de achar que fiz tudo o que queria na vida.” Poucas pessoas podem fazer afirmação tão ousada quanto essa. Mas Arlete Pinheiros Esteves da Silva pode. Talvez porque a vida tenha sido generosa com ela, ou porque tenha aprendido a não desejar aquilo que não podia. Conheceu os palcos nova, na década de 1950, com pouco mais de 20 anos. Em uma busca incessante por saber quem era, Arlete transformou-se em Fernanda Montenegro. E esta, por sua vez, em tantas outras. Foi Lisa, Dora, Salomé, Marisa Dumont e até a Virgem Maria. Vivendo na pele de muitas mulheres é que a atriz se encontrou. E dando vida à filósofa Simone de Beauvoir, na peça Viver Sem Tempos Mortos, acabou fazendo uma avaliação da própria vida.

As duas têm em comum a liberdade como ponto de partida. “Liberdade de fazer da vida o que quiser, e sentir-se bem fazendo o que quiser dela”, diz Fernanda, que sempre fez tudo o que desejou. Não porque fosse revolucionária. Não porque tivesse espírito anarquista ou almejasse mudar o mundo. Fernanda não empunhava nas ruas o discurso feminista contido em obras de Simone (e que ela adorava devorar), mas viveu o propósito da filosofia. Soube viver a liberdade e a intensa entrega à vida. À sua moda. “Uma freira que vive por vocação em um convento, que se fecha ali e não vê nunca mais ninguém, se é o que quis da vida dela, então, está em completa liberdade”, explica a atriz.
 

DONA DA CENA


Com pouca altura, era no palco que Fernanda crescia, imponente, gloriosa. Na vida real, no entanto, voltava a ser a Arlete de sempre. Mulher que não liga para o físico mais do que para o intelecto. Não era a mais bonita, nem precisava ser. Assim como Simone de Beauvoir, sabia fazer-se atraente não pela aparência, mas pelo modo de pensar, pela energia que exalava, pelos trejeitos e o olhar sedutor. Não dava para dizer certamente quais eram os seus segredos, mas conseguia exercer encantamento.

Certa vez, a companhia de Henriette Morineau a contratou para assumir o papel de uma personagem feia em um espetáculo. Fernanda arrumou coragem e disse que queria ser a garota bonita. Foi chamada de louca pelo elenco. Não só pegou o papel, como ninguém protestou na plateia. Ninguém ousou supor que ela não seria capaz de enfeitiçar a quem quer que fosse.

“O seu porte de cena é de um animal, dono de sua liberdade de movimentos num espaço que é inteiramente seu. Há intimidade tão estreita entre a atriz e o espaço de trabalho que sua criação nada mais é do que um ato de intimidade. Cada pausa, silêncio ou movimento corresponde a um gesto que acentua a intimidade. Sua própria respiração é um elemento dramático tão forte que é impossível ao espectador da última fila deixar de ouvi-la”, diz o crítico de teatro Luiz Macksen no livro Fábrica de Ilusão: 50 Anos de Teatro, escrito pelo amigo de Fernanda e parceiro de cenas Sérgio Britto.


ABRAM-SE AS CORTINAS


Questionada sobre uma passagem inesquecível em sua trajetória, Fernanda retorna a 1950 para lembrar de um encontro único, o pontapé que precisava para que a carreira deslanchasse. “Um dia, eu e o Fernando (Torres) estávamos no Teatro Maria Della Costa, encontramos Gianni Ratto e nasceu em nós, junto com Sérgio (Britto), a ideia de criar uma companhia de teatro. Não tínhamos nem quase o que comer, mas fundamos uma companhia.” Logo depois, o ator Ítalo Rossi uniu-se à trupe, na Companhia dos Sete. Foi a oportunidade de contracenar com grande elenco e textos de autores relevantes. O trabalho nos palcos levou a atriz para a televisão. Era o que faltava para Fernanda cair nas graças do grande público.

Ratto, que dirigiu a maioria das peças encenadas pela atriz, sabia bem com quem estava lidando. “A sólida estruturação moral, a noção crítica que ela tem de seu trabalho na perspectiva histórica de suas origens e do mundo ao qual pertence e que ela mesma criou para si, emprestam ao seu trabalho o cunho do severo e implacável profissionalismo de uma artista da Renascença”, relatou Ratto pouco tempo antes de falecer, no texto Fernanda Encena: Retrospectiva 50 anos.
 
O comentário não deixa de ter fundamento. O teatro renascentista é marcado por heróis que sofrem em cena e que, assim como os personagens de Shakespeare, transformam-se aos olhos do público. Coisa que Fernanda faz com admirável facilidade. Sem medo de se expor, de se entregar completamente. Talvez esteja aí mais uma semelhança com  Simone.

 

Foto: Rede Globo / Divulgação
Fernanda com Rodrigo Lombardi na novela Passione. Foto: Rede Globo / Divulgação

HISTÓRIA DE AMOR

Se as duas mulheres têm tanto em comum, nos relacionamentos elas se diferem. Enquanto Simone vivia de paixões, Fernanda preferiu o amor. E escreveu cada página dos 55 anos vividos com o ator Fernando Torres sem deixar lacuna para outros personagens. Não havia espaço para o amor livre, porque Fernando ocupou todas as frestas. Não havia como acrescentar substitutos, coadjuvantes ou dublês.

Os dois se conheceram nos palcos, em 1950. Em pouco tempo, Fernando tornou-se seu marido e companheiro para a vida toda. Mas nada de mocinha e mocinho. Na vida real, os papéis estavam em constante transformação. “Eu acho que todos nós temos um período em que a casa é o pior lugar para se viver. Todos nós temos isso, assim como temos o momento de sentir que essa casa é o único lugar onde podemos viver. Não há perfeições.”

A diferença está no querer. “A realização dele nem sempre é contínua, um mar de rosas. Os embates humanos existem em todos os lugares. A gente pressupõe que o lar é a nossa toca, mas às vezes a toca é difícil. Tem a onça e o bode. Ou sai o bode ou sai a onça. Ou, então, o bode e a on&cced



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