História em silêncio

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Christiane Ferreira

Foto: Arquivo Pessoal
Após o desaparecimento de Rubens Paiva (ao centro), sua família nunca mais foi a mesma. Foto: Arquivo Pessoal

Cicatriz. Marca deixada na pele, lembrança de uma dor moral. Se soubesse que no dia 20 de janeiro de 1971 seria a última vez que veria o pai, Ana Lúcia Paiva, na época com 13 anos, talvez o tivesse abraçado ou dito o quanto o amava. Não houve tempo. O pai de Ana Lúcia Paiva era Rubens Paiva, engenheiro, jornalista, que empunhou a campanha brasileira O Petróleo é Nosso e foi deputado federal pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), cassado com o golpe militar de 1964.

Naquele dia viu seu pai pela última vez. Ela havia dormido na casa de uma amiga na noite anterior e, no dia seguinte, voltou para casa para buscar o biquíni e uma camisa velha do progenitor para poder ir à praia – na época a peça era usada como saída de banho. A última imagem que guarda do pai foi ele sentado na cama amarrando os sapatos, abrindo a gaveta e dando-lhe a roupa, com ar preocupado. Daquele momento em diante, a vida de sua mãe, Maria Eunice, e de seus quatro irmãos (Vera, Maria Eliana, Marcelo e Maria Beatriz) nunca mais seria a mesma.

Quarenta anos depois do sequestro do pai e sem um corpo para enterrar, Ana Lúcia revive sua cicatriz com a esperança de que a história de Rubens e tantos outros desaparecidos políticos brasileiros – cerca de 200 – venha à tona com o projeto de lei do Governo Federal que cria a Comissão da Verdade, com objetivo de esclarecer casos de violação de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Há a possibilidade de o projeto ganhar o nome de Rubens Paiva, belíssima homenagem na visão de Ana.

Ela acredita que há uma forte iniciativa do governo Dilma na aprovação do projeto. Ana acompanhou de perto, apenas como ouvinte, uma reunião sobre a Comissão com a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário. “Fiquei muito impressionada, porque existe real vontade do governo em esclarecer este capítulo da nossa história. Para nós (família) não é um alívio nessa altura da vida.” Ela não quer revanche, mas que pelo menos os torturadores, na maioria já mortos, tenham os nomes divulgados e um julgamento simbólico. Que esse capítulo da história brasileira seja esclarecido.


TOCAR NO ASSUNTO

E o silêncio – explícito ou velado – foi sempre a palavra de ordem quando o assunto girava em torno dos desaparecidos políticos da década de 1960. Seguiu assim por décadas. É por isso que somente agora a família Paiva sente-se à vontade para falar no assunto. Pelo menos Ana Lúcia. “Durante todo esse tempo a gente guardou em algum lugar da cabeça e do coração, sem que me desse conta. As pessoas ficavam sem graça, ninguém perguntava nada. A gente sofreu, mas fingiu que não sofreu”, revela a matemática, que muitas vezes preferiu dizer aos outros que o pai havia sofrido um ataque cardíaco.

Só agora os filhos de Ana Lúcia – Liza, 23, Patrick, 20, que ainda moram em Paris, e Michael, 15 – passaram a conhecer a trajetória do avô.  Por serem pequenos, ela não queria contar essa história triste.

Para a família, o desaparecimento de Rubens também era segredo. Tanto que somente em abril deste ano foi que Ana Lúcia revelou que todo dia 20 de janeiro, independentemente do lugar onde esteja, entra numa igreja e faz uma oração. Nem seus irmãos sabiam disso. Eles tampouco falam no assunto e a primeira vez que choraram juntos foi durante a exposição do Memorial da Resistência. Muitos fatos e sentimentos acerca do desaparecimento de Rubens vão ficar no eterno silêncio, o mesmo escolhido por dona Maria Eunice, a única pessoa que poderia recontar toda a história, hoje com Alzheimer, que lhe roubou a memória.

Uma fortaleza, como Ana Lúcia gosta de pontuar, dona Eunice não contava para os filhos os pormenores do que ocorria com o pai. De 1964, época em que Rubens foi cassado e exilado na embaixada da Iugoslávia, Ana lembra de ter visitado Rubens. “Desse período sei muito mais pelo que li, mamãe segurou tudo. Lembro de termos ido visitá-lo em Brasília, a casa era bem vazia, não tinha móveis, todos os amigos dele estavam lá, fizeram churrasco. Mas, na verdade, ele estava preso. Papai andava com um sapato de ferro para fazer exercícios, ficar em forma e facilitar a fuga.”

Sete anos depois do exílio, Rubens Paiva não foi levado à força de casa, seguiu com seu próprio carro, mas jamais voltou. Militares do serviço secreto da Aeronáutica entraram em sua casa, dona Eunice ficou sentada no sofá enquanto o marido se aprontava para ser torturado e morto 24 horas depois. 

Para a família Paiva, o suplício apenas começava. Um dia depois de Rubens, foi a vez da mãe, Maria Eunice, ser levada, juntamente com a filha Maria Eliana. Eunice voltaria 12 dias depois e a adolescente, no dia seguinte. Enquanto isso, os outros três filhos – Marcelo, Ana Lúcia e Maria Beatriz (Vera estava na Europa) – ficariam sob a vigilância cerrada dos militares. “Minha irmã pedia para ir comprar balas e eles não deixavam. Não sabia o que estava acontecendo, mas sentia que tinha algo errado. Lembro de ter dormido todos os dias na cama da minha mãe”, conta Ana Lúcia.

Com os três irmãos sozinhos, Marcelo Rubens Paiva teve a ideia de jogar uma caixa de fósforos pela janela com um bilhete para os vizinhos, pedindo que avisassem a avó para ela vir de São Paulo. E foi isso o que aconteceu. Depois do ocorrido com Rubens, seguiram para Santos, local onde o pai de Maria Eunice morava. E a ditadura, de certa forma, privava a família do convívio dos amigos.

 

Foto: Celso Luiz
Depois de 40 anos do sequestro e desaparecimento do seu pai durante a ditadura militar, Ana Lúcia Paiva ainda sonha com enterro digno para Rubens Paiva. Foto: Celso Luiz

“O que chama atenção é que Rubens não tinha uma vida na clandestinidade, não lutava com armas, era um burguês progressista e foi levado de sua casa. Menos de 24 horas depois foi morto e seu corpo nunca foi encontra



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