Filho não vem com bula

Envie para um(a) amigo(a) Imprimir Comentar A- A A+

Compartilhe:

Miriam Gimenes

 Foto: Gabriel Gabino
Lucinha Araújo admite ter passado a mão na cabeça de Cazuza e revela que se soubesse que ele duraria tão pouco, o teria mimado mais. Foto: Gabriel Gabino

Em todos os lugares que a vista alcança há um retrato de Cazuza. As imagens mostram fases de sua ‘vida louca, vida, vida breve’, como ele mesmo cantou. Tão breve que se Lucinha Araújo, 75, tivesse o dom de prever, teria mimado mais o tão amado e único filho. Há 21 anos, desde sua morte, a única coisa que resta à intensa e ‘exagerada’ mãe é manter viva a memória do rebento e cuidar de crianças soropositivas na Sociedade Viva Cazuza, onde, além de ajudar, encontra combustível para acordar todos os dias. É lá que as fotos de Cazuza estão espalhadas e ele mostra-se mais vivo do que nunca.

A mulher cuja história “não teve tons pastel, mas sim cores fortes”, fundou a instituição em 1990, logo após a perda do filho para o HIV. Durante todo esse tempo vem lutando para mantê-la aberta. A trajetória destas últimas duas décadas, regada a lágrimas, lutas, dificuldades e também alegrias, é contada em seu recém-lançado livro O Tempo Não Para – Viva Cazuza, escrito em parceria com Christina Moreira da Costa, seu braço-direito na Sociedade. A obra fecha a trilogia em homenagem ao cantor e compositor.

Lucinha divide sua vida em duas vertentes: metade é dedicada à instituição e a outra, ao casamento de 55 anos com o empresário João Araújo. As duas estão diretamente ligadas ao filho, em quem pensa 24 horas por dia. Como todo casal que tem uma perda como a deles, tiveram crises, mas foram unidos pelo amor a uma pessoa inesquecível. Cada qual à sua maneira, é claro. João não gosta de tocar no assunto da morte do filho e raramente vai à sociedade. Já ela, embora não seja ‘masoquista’, faz questão de conviver todos os dias com a doença que o levou.

Dona de uma dor que não cessa, Lucinha por nenhum momento esmoreceu. Seguiu à risca o pedido de Cazuza que – em seu estilo verborrágico – pediu a ela, já doente: “Não quero ver você vestida de preto, chorando pelos cantos, enchendo o saco dos outros. O que é isso? Você nunca foi assim...” Ainda com todos os obstáculos que enfrentou – a morte do filho, a perda de crianças para o HIV, câncer de mama, a colocação de nove stents e um marca-passo no coração – mostra-se vaidosa, forte, muito mais experiente e com respostas ácidas, o que delata a quem o filho puxou. Confira a seguir a entrevista com esta mulher de coração valente.

DIA-A-DIA – O que significa a Sociedade Viva Cazuza na sua vida?

LUCINHA ARAÚJO – Ela representa 50% da minha vida, das minhas aspirações, dos meus orgulhos. A outra metade é o meu casamento de 55 anos. As lembranças do meu filho ninguém vai tirar da minha cabeça, penso nele todos os dias, e tudo está interligado. Venho aqui diariamente para me reabastecer, pensar na vida, ajudar a quem precisa e para ser ajudada.


DIA-A-DIA – Quantas crianças você auxilia?

LUCINHA – Temos 25, mas esse número varia. Passamos sete anos sem receber ninguém e, de repente, de um ano para cá, foram oito bebês. Foi bom porque é uma renovação, os mais velhos estão encantados com as crianças. 


DIA-A-DIA – Há dois anos você pensou em fechar a sociedade porque não conseguia financiar os custos. Como está a situação financeira?

LUCINHA – Não mudou muito. Primeiro porque quando abrimos a casa os direitos autorais do Cazuza custeavam 50% das despesas, hoje não cobrem nem 10%. E esses últimos governos também suspenderam as emendas parlamentares que eu recebia. Busquei fazer leilões beneficentes, eventos, rifas, mas não é assim que algo sério sobrevive. O (governador) Sérgio Cabral me deu uma ajuda há dois anos e (o prefeito) Eduardo Paes me prometeu uma colaboração em julho (o convênio foi assinado).


DIA-A-DIA – Você em algum momento se viu fazendo algo por essas crianças que não teve tempo hábil para fazer pelo seu filho?


LUCINHA – Não, porque é diferente. Meu filho era único, criado dentro da minha casa. Eles vivem em outro lar que não é o que eu vivo. Apesar de adorar as crianças, é diferente. Depois, fui mãe de primeira viagem e continuei, porque só tive um filho. Não sei se acertei, mas fui bem intencionada. Tenho a consciência tranquila de que fiz tudo o que podia.


DIA-A-DIA – Você acha que em algum momento errou na educação de Cazuza? Mimou demais, passou a mão na cabeça dele quando não devia...

LUCINHA – Isso (mimar) tenho certeza e faria de novo. Toda mãe é assim, não é? Sempre fui muito exigente com ele, mas, ao mesmo tempo, passava a mão na cabeça. Não me arrependo, faria tudo igual. Acho até que mimei pouco, deveria ter mimado mais se eu soubesse que ele duraria tão pouco. Porque filho não vem com bula, e no primeiro não existe uma fórmula certa. Você não diz: ‘ah, pega essa criança, faça isso, aquilo...’ Nunca mais tive outro, então, aquele foi o meu estudo.


DIA-A-DIA – Você acha que as mães que passam HIV para os filhos têm consciência do que é esta doença?

LUCINHA – Tenho quase certeza de que não têm. Trabalho com população de rua, paciente psiquiátrico e viciados em drogas. É pedir muito querer que eles tenham consciência de algo. Não têm arroz com feijão. Vão saber o que é camisinha? É difícil.


DIA-A-DIA – E quando soube que o Cazuza contraiu o HIV, você tinha dimensão do que era?


LUCINHA – Não tinha. Era uma doença nova, tinha acabado de surgir. Achava que era perigosa, mas todo ano esperava que aparecesse a cura. Foi até bom porque, se desde o primeiro dia eu tivesse achado que era mortal, teria sofrido o dobro e ele também. Nós fomos alimentados naqueles cinco anos pelo desejo da cura.


DIA-A-DIA &n



Diário do Grande ABC. Copyright © 1991- 2024. Todos os direitos reservados