DEBATE NECESSÁRIO

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Miriam Gimenes

DEBATE NECESSÁRIO

 
'Democracia em Vertigem,' da diretora Petra Costa, que acaba de entrar em cartaz na Netflix, mostra quando foi implantado o 'embrião' da polaridade política do País

Diego Bresani/ Divulgação
 
O Brasil está dividido. E, cada cidadão que faz parte de um desses dois grupos acredita estar do ‘lado certo da história’. Mas como se chegou a essa situação? Quando foi implantado no ventre político do País a semente da discórdia, da polaridade? Partindo do seu olhar pessoal, a  cineasta Petra Costa (Elena) combina relatos do complexo passado político e industrial da própria família e o acesso sem precedentes a lideranças antigas e atuais — entre elas, os ex-presidentes Dilma Rousseff e Lula, ambos do PT – para responder essas e outras perguntas no documentário Democracia em Vertigem, que acaba de entrar no catálogo da Netflix.
O longa – eleito pelo jornal The New York Times como um dos melhores filmes do ano, em sua famigerada lista –, em duas horas de duração  traça, de maneira irretocável, a queda de ambos os líderes democráticos que resultou no impeachment de Dilma, na prisão de Lula e na ascensão da extrema direita, que tem como principal representante o presidente Jair Messias Bolsonaro (PSL). Confira, a seguir, a entrevista com a diretora: 

 
 Quando você decidiu fazer esse filme?
A ideia surgiu de uma maneira quase operística, em março de 2016, quando eu estava vendo o Brasil transbordando de tensões de classe como eu nunca havia visto antes. Os maiores protestos contra Dilma Rousseff estavam acontecendo – e eu saí para as ruas com uma câmera para filmar, chocada com o que vi.
 
O que você sentiu nas ruas durante esse tempo?
Havia um nível intenso e muito palpável de ódio e intolerância; eu vi um menino vestindo vermelho que estava protestando contra Rousseff – por um acaso ele era de esquerda –, mas  teve que ser retirado do protesto com outra garota porque estava vestindo vermelho. As pessoas estavam gritando que ele deveria ir para a cadeia por causa disso. Havia também manifestantes pedindo o retorno dos militares, foi a primeira vez que eu vi isso na minha vida. Outros estavam pedindo o retorno da monarquia. Havia esse sentimento geral de uma mudança em direção à loucura, as pessoas pareciam querer voltar ao passado, a um momento antes dos direitos civis, 50 anos atrás.

 
Você é uma filha da democracia brasileira nascida na primeira encarnação do regime após a ditadura militar. Sempre pensou em dar um ângulo pessoal a essa história? 
Comecei a filmar a urgência do momento, querendo registrar o que estava acontecendo nas ruas. Eu sabia que era de extrema importância histórica. Mas todos os meus filmes sempre tiveram um ponto de vista pessoal, então, quando comecei a fazer este, a primeira frase que me veio à mente, que é a semente do filme, foi: “A democracia brasileira e eu somos da mesma idade e eu pensei que em nossos 30 anos nós duas estaríamos pisando em terra firme”. Meu relacionamento com a democracia – como eu cresci com ela, como eu herdei isso dos meus pais e as contradições dentro da minha própria família (ela é herdeira da construtora Andrade Gutierrez) aflorou quando comecei a pensar sobre a forma do filme. 

 
Divulgação/Netflix
 
As imagens do filme são surpreendentes, incluindo a viagem de carro de Luiz Inácio Lula da Silva até a prisão. Como você conseguiu esse tipo de acesso?
Quando mais nova, eu tinha visto o Lula e outras pessoas do Partido dos Trabalhadores em comícios, porque minha mãe tinha sido ativista no partido em seus primeiros dias. Assim que os protestos eclodiram, enviei uma carta a Lula pedindo uma entrevista com ele e outra para Dilma Rousseff, sua sucessora. Cartas que depois descobri que eles nunca leram. Continuei insistindo e, depois de três meses, consegui um encontro com o Lula. Expliquei sobre o filme e até mostrei um teaser para que ele entendesse que era no estilo cinéma vérité, e que eu queria acompanhar o seu dia a dia em vez de fazer uma entrevista formal. Ele disse que, se eu ficasse por perto naquele dia, talvez eu pudesse acompanhá-lo em um comício. Após oito horas de espera em seu escritório, consegui entrar no carro com ele e sua mulher. Com Dilma, também levei meses. Bolsonaro me deu acesso imediato, mas é claro que ele não era presidente quando o entrevistei. Também ganhamos a confiança do fotógrafo oficial de Lula, Ricardo Stuckert, que nos concedeu acesso a uma imensa quantidade de material extremamente precioso que ele havia gravado antes e depois de começarmos a fazer o filme.

 
Descreva o período em que a história se desenrolou e como foi ser uma testemunha dela sendo feita. 
No começo, eu cobri as ruas. Quando percebi que o destino do País não seria determinado nelas, mas pelo parlamento, comecei a seguir o Congresso. Confesso que uma parte de mim pensou que nós iríamos filmar apenas a primeira votação do impeachment, mas acabou não sendo o caso e, toda vez que eu sentia que tínhamos terminado, outra reviravolta dramática aconteceria e nós nos veríamos gravando de novo. Foi como o Dia da Marmota. Ser capaz de testemunhar essas viradas foi uma honra e um privilégio. Mas, ao mesmo tempo, era extremamente desanimador assistir em primeira mão a nossa democracia mergulhar no caos. 

 
‘Democracia em Vertigem’ é pessoal e político, tecendo múltiplos segmentos juntos. Você se propôs a fazer algo que fosse essas duas coisas?
A abordagem mais comum seria contar essa história como um drama político seco, mas eu estava interessada em explorar os aspectos pessoais e poéticos que estavam por trás da saga. O que mais me interessou foi a relação pessoal de um indivíduo com a sua própria democracia, algo com que mais e mais pessoas em todo o mundo têm estado intimamente e cada vez mais preocupadas. Também senti que, em um cenário de intensa polarização política, minha melhor contribuição foi falar de minha própria experiência. Muitas vezes, não percebemos que todos temos diferentes origens e fundamentos morais que moldam nossas visões políticas. Um erro comum é envolver-se em debates políticos pensando que o outro lado será influenciado por argumentos que achamos pessoalmente convincentes. E, quando isso não acontece, nós os tratamos como inimigos. Então tentei traçar meu background para mostrar como o meu ponto de vista foi moldado. Minha esperança é que, ao levar o espectador comigo nesta jornada, eu possa despertar um tipo de escuta empática que está amplamente ausente no espectro político atual.

 
Há uma profunda complexidade na história da empresa de construção de seus avós, e que acrescenta camadas ao filme. Como o formato do ensaio se tornou o certo para você? 
Para mim, o formato do ensaio era a melhor maneira de não cair nos aspectos preto e branco dessa história, que é o que parte da mídia brasileira e de ambos os lados do espectro político estavam fazendo. Eu estava mais interessada nas áreas cinzentas, com as quais muitos de nós estamos lidando hoje, sejam nossos ancestrais que eram traficantes de escravos, ou parentes que estavam envolvidos com empresas que cometeram atos ilegais. Estamos em um momento em que cada vez mais pessoas estão olhando para a sua própria responsabilidade em relação ao legado de privilégio, exploração e desigualdade que herdamos de nossos ancestrais. O filme procura iluminar as áreas cinzentas.
Foram quantas horas de filmagem?
Horas incalculáveis. Além de todas as que filmamos, estávamos lidando com os arquivos de Lula, a história de Dilma e os depoimentos que foram filmados durante a Operação Lava Jato, uma investigação sobre corrupção generalizada envolvendo executivos de empresas e legisladores. Nós passamos por tudo. Foi uma imensa quantidade de filmagens.

 
Descreva o processo de pesquisa pelo qual você passou para fazer este filme. 
Foi impressionante. Lembro-me do primeiro encontro que tivemos com nosso arquivista, no qual basicamente pedi a ele quase toda a história do Brasil – a construção de Brasília, o golpe militar, protestos pedindo a democracia, o começo do Partido dos Trabalhadores, a primeira eleição direta, o processo de impeachment de 1992, que sequer entrou no filme, para não falar dos depoimentos da Operação Lava Jato que nós mesmos baixamos da internet. Nós tínhamos um servidor com muitos terabytes que continha todos os nossos arquivos; poderíamos começar nosso próprio museu visual com toda a pesquisa que acumulamos. Nossos incríveis arquivistas Antonio Venancio e Isabela Mota fizeram um belo trabalho sem o qual este filme não teria sido possível.

 
Corrupção é um grande tema neste filme, e que também deve ter consumido horas de pesquisa. Alguém fechou as portas para você?
Nunca consegui acesso a Temer (vice-presidente da Dilma e depois 37º presidente do Brasil) ou a Aécio Neves, o candidato da oposição que foi o primeiro a pedir o impeachment de Dilma. Eu também não pude ter acesso ao então presidente do Congresso, Eduardo Cunha, e até hoje não consegui colocar as mãos em alguns dos vazamentos de áudio que poderiam ter sido muito reveladores, mas que foram retidos pelo Supremo Tribunal Federal. O juiz (Sergio) Moro, que prendeu Lula, me ofereceu 10 segundos para uma entrevista. Nós não tivemos acesso a muita coisa, mas, ao mesmo tempo, a Operação Lava Jato tornou pública muita informação sobre corrupção – mais do que qualquer outra na história. A corrupção exposta nos últimos anos no Brasil ajudou a criar uma descrença geral na política, que levou muitas pessoas no País a pararem de acreditar na democracia – muito perigoso. Uma pesquisa recente da Latino, que disse que apenas 20% dos brasileiros acreditam que a democracia é a melhor forma de governo.

 
Este filme poderia ser um manual para qualquer país que esteja enfrentando uma democracia frágil. Como foi capturar as cenas finais, que são verdadeiramente angustiantes? 
Para mim, os momentos mais difíceis foram no início e não o fim, que traz a última eleição. As sementes da intolerância foram semeadas, e foi muito claro nos primeiros protestos que eu filmei que a mídia estava normalizando a intolerância e o ódio, insistindo que era uma forma patriótica de expressão, sempre retratando protestos em uma luz positiva e não levando a sério o fato de que as pessoas pediam uma intervenção militar e o encarceramento de pessoas com as quais não concordavam. Foi bastante desanimador. Tive a sensação de ver esse movimento crescer enquanto a maioria da população e a própria mídia não estavam levando isso a sério – até a eleição, quando todos tiveram que enfrentar alguns fatos preocupantes.

 
Ao fim desta experiência, você tem alguma sensação de consolo ou catarse? Ou você se sente sem esperança? 
Eu não me sinto sem esperança. O que foi bonito de ver neste processo é que estávamos muito adormecidos em ambos os lados do espectro político. Por muito tempo as pessoas não estavam prestando muita atenção à política, então foi um alerta para todos no Brasil, assim como em muitos lugares do mundo. Nós simplesmente não podemos pensar na democracia como algo garantido. Somos todos responsáveis pela sua manutenção. A questão é: como preservá-la? O que me deixa perplexa é ver a internet e os algoritmos sendo usados de maneiras que não podemos controlar. Como combatemos isso? Enquanto eu acho que há um senso de esperança – porque as pessoas estão se tornando mais politizadas – há também uma sensação de desamparo em termos de quais ferramentas vamos usar agora, quando o velho jeito de fazer política é desacreditado e o extremismo parece ser uma narrativa mais convincente. É um momento que nos pede para reinventar nossas ferramentas e nossas narrativas.



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