Amor que transborda

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Daniela Pegoraro

A vida segue o seu ciclo: nascer, crescer e envelhecer – é inevitável. Fatos e ações de ontem, hoje e amanhã se tornarão memórias do passado, recordações doces e amargas que fizeram de nós quem realmente somos. Para quem sofre com a doença de Alzheimer, no entanto, as lembranças se dissipam, rostos de entes queridos se perdem, e eventualmente, nas fases mais severas, esquecem-se de funções básicas aprendidas ainda nos primeiros anos de idade, tais como comer, ir ao ba-nheiro e, até mesmo, falar. Sem cura, quem sofre com a patologia carece de atenção contínua, carinho e paciência daqueles que o cercam. A função de cuidar é exigente e exaustiva, levando em consideração que o quadro só tende a se agravar. Mas existem aqueles que persistem em estar ao lado de quem sofre com a demência, mesmo nos últimos lapsos de consciência do indivíduo. “O médico disse: ‘O Alzheimer não tem cura. A cura é no amor. A forma que você tratar ela daqui para frente vai determinar como ela vai passar por essa doença’, relembra a analista de responsabilidade social Sheila Viana de quando recebeu o diagnóstico da mãe, há dez anos.

Sempre elétrica, Dirce Viana era antenada, astuta e procurava oferecer ajuda a quem precisava. Aos 60 anos, quando começou a ficar esquecida e perder o raciocínio no meio da fala, a filha logo estranhou e a levou ao médico para checagem. Foi descoberto Alzheimer ainda em fase inicial. “Foi difícil para todos nós, mas muito mais para ela. Ela ainda estava em plena consciência, e sabia que um dia esqueceria quem a família era. Isso agravou ainda mais a situação”, conta a analista. Desde que recebeu a notícia, a filha passou por um longo processo de aceitação e de compreensão do quadro da mãe. “Não parecia ser real. No dia em que ela me olhou e não me reconheceu mais, foi quando minha ficha caiu. Não tinha mais o que fazer, era tempo de entender que ela estava doente, ou eu iria enlouquecer.”

A patologia neurodegenerativa vem de condição genética, e se manifesta quando o indivíduo se encontra em idade avançada – e, por isso, seus primeiros sinais de esquecimento podem passar despercebidos como algo casual. Entretanto, o geriatra Leonardo Bernal chama a atenção para outros dois sintomas que também indicam a presença da doença: a depressão e o transtorno de comportamento. “O tratamento existente é pouco. Consiste em remédios para manter a funcionalidade do corpo do paciente, que pode ajudar durante oito a 12 anos, mas ainda não existe nada que possa parar a enfermidade”, explica o médico.

Atualmente, Dirce não sofre com problemas de saúde física, e continua ativa: o que mais faz é andar e falar. O que segue em evidência é, no entanto, o processo de degeneração da memória. “Hoje, a única pessoa que ela consegue identificar é o meu pai, porque eles partilharam uma vida inteira”, explica Sheila. A analista mora na mesma casa dos pais, em Santo André, e desempenha com carinho a função de cuidar da progenitora. “A doença dela me ensinou a ter respeito pelas pessoas, entender o amor incondicional e o que realmente significa a palavra ‘mãe’. Tive uma evolução muito grande ao lado dela”, conta.

Sheila ainda acrescenta que seu cuidado é voltado de maneira igualitária para o pai, que é quem passa mais tempo no dia a dia com Dirce. “Ele precisa espairecer. Quem cuida precisa ainda mais de atenção, porque estamos vivendo um mundo que não é nosso”, explica. Ela mesma teve acompanhamento de terapeuta, o que indica ter sido importante para encarar a situação. É exatamente o que o geriatra Bernal enfatiza: “Tratamos do paciente, mas nos esquecemos daquele que está sempre ao lado. A carga emocional que o cuidador recebe é muito maior, é um trabalho cansativo”.

É nessa posição que se encontra a dona de casa Margarida Vieira, 76, ao dedicar sua atenção inteiramente ao marido, que sofre com Alzheimer. “A rotina é complicada, tem que ter alguém com ele o tempo inteiro. Queria ir na igreja, mas não consigo. Não tenho tempo de cuidar de mim, faz com que eu me sinta presa”, conta. Apesar de morar com a neta e próxima aos filhos, o trabalho pesado cai inteiramente em seus ombros. Isso porque Francisco Fardin, atualmente com 87 anos, requisita constantemente a presença de sua mulher – e ela acrescenta: ninguém tem a mesma paciência para lidar com ele. “Para mim, é uma luta. Hoje mesmo ele não me deixou dormir, ficou acordado a noite inteira gritando que queria ir trabalhar. Às vezes até os vizinhos escutam”, desabafa Margarida.

O problema de Francisco veio à tona logo depois de um acidente, há quatro anos. Como trabalhava em construções, decidiu reformar a garagem de casa. Ergueu um andaime, mas em determinado momento a madeira rompeu e o idoso caiu de cabeça. “Quando ele acordou, já não era mais o mesmo. Não sabia onde estava, quem era”, conta a neta Letícia Rodrigues, 21. Além das sequelas neurológicas imediatas causadas pela contusão, foi detectada a doença de Alzheimer, que já se fazia presente. Foi quando Letícia passou a morar com os avós, em Ribeirão Pires, para ajudar com os cuidados. “Antes meu avô era extrovertido, batia perna por toda São Paulo. Hoje em dia ele está quieto, quer ir embora para a casa dele mesmo já estando aqui, e passa grande parte do tempo dormindo ou comendo”, conta a estudante. “Sinto saudades de conversar com ele. Sempre fomos muito próximos. Saber que ele jamais vai ser a pessoa que ele era há quatro anos parte o meu coração de um jeito que nem sei explicar”, acrescenta.

Embora Letícia faça o possível para dar atenção ao avô, reconhece que a situação sobrecarrega a avó – e se preocupa, justamente por esta também ser idosa. Margarida cuida com carinho do marido, mas isso não a impede de sentir-se cansada e sem espaço para pensar na própria vida. “Me falaram sobre uma casa de repouso da cidade, onde eu poderia deixá-lo durante o dia e buscá-lo à noite, mas meus filho não quis. Ele acha que tenho obrigação de cuidar o tempo todo”, conta a dona de casa.

Esse confinamento é realidade presente na vida de muitos que convivem com portadores do Alzheimer. A doença foi descoberta em Pedro Ribeiro, de Mauá, quando, aos 82 anos, acordou e já não reconhecia mais a família ou conseguia andar. “Depois que tivemos o diagnóstico é que pensamos: ‘Nossa, aqueles comportamentos e esquecimentos já eram do Alzheimer’. Na época, achávamos que era apenas da idade” conta a filha Elian Ribeiro, 47, que mora na mesma casa que os pais e diariamente presta cuidados. Entretanto, assim como no caso de Margarida, quem mais passa tempo com Ribeiro é a mulher, também idosa – de quem a saúde, atualmente, é a que mais preocupa Elian. “Minha mãe ficou pior. Ela já tomava remédio para depressão, não tem nenhuma paciência com meu pai e, para completar, está com problemas no coração”, explica.

Quanto à situação do pai, já encara como um beco sem saída. Hoje o idoso tem dificuldades para andar, comer sozinho e, às vezes, não consegue identificar os familiares. Receber o diagnóstico é como um destino selado: não há o que fazer para fugir do premeditado, apenas adiar sua chegada . “Tem dias que morremos de rir com o que ele faz e fala, mas outros, quando ele está muito mal, nós só choramos. Não queria estar passando por isso. Sei que amanhã meu pai pode estar pior, até mesmo entubado em uma cama de hospital”, conta a servidora pública em um discurso emocionado. Assim, o futuro em relação ao pai é de constante receio do que pode acontecer. “Eu espero em Deus que ele descanse logo, porque só tende a piorar. Não porque ele me dá trabalho, mas porque não quero vê-lo sofrer”, revela.

Viver um dia de cada vez é a estratégia adotada para enfrentar o amanhã incerto de um futuro já escrito. É assim que Sheila, mesmo após dez anos, encontra forças para seguir os dias com a mãe. “Com minha mãe eu volto a viver. Passo o dia tão mergulhada na rotina, que é só quando eu viajo para o mundo dela que me sinto bem.” Ela ainda acrescenta que conviver com alguém que sofre com a doença requer amor e paciência, acima de tudo – e que todos os esforços compensam. “Peço para Deus não deixá-la sofrer. Se amanhã minha mãe deixar de existir, eu deito e durmo em paz, porque sei que fiz tudo o que podia por ela, afirma”.

 




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