Cordel: O jornalismo do sertão

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Miriam Gimenes

Foto: Divulgação
A novela Cordel Encantado valoriza literatura típica  do Nordeste que voou dos cordões e ganhou o Brasil. Foto: Divulgação

A família real portuguesa aportou na Bahia no dia 18 de janeiro de 1808. Além de  trazer confusão, a rainha louca, o rei bonachão e grande parte da Corte que fugia das tropas de Napoleão Bonaparte, as naus tinham uma bagagem que ia além de pessoas e quinquilharias. Muito do que se consome, estuda e faz hoje é reflexo de imposições culturais e comportamentais que se propagaram no País desde aquela data. É claro que as heranças deixadas pelo império sofreram modificações, mas elas persistem até hoje, principalmente nos arredores de onde se instalou a princípio a Família Real, no Nordeste.

Nessa região, onde a tradição é muito valorizada, um dos relevantes resquícios culturais deixados pelos portugueses pode ser visto em quase todas as esquinas: a literatura de cordel. Com assuntos variados, como  histórias de amor, humor, ficção, boato, temas religiosos, lendas e preconceito, mesmo após mais de um século de existência, esse tipo de leitura informa e diverte a população.

É usando os ingredientes dessa herança cultural nordestina que a novela  Cordel Encantado resgata um pouco da história do Brasil. Ambientada em uma mistura de cangaço (cordel) com reino europeu (encantado), a trama de Thelma Guedes e Duca Rachid foi gravada no Sergipe e na França. “Esse sertão povoado por reis, profetas e cangaceiros está presente há muito tempo em nossa literatura de cordel, nos versos escritos, lidos e, muitas vezes, cantados por repentistas”, explica Thelma.

Especialistas aplaudem de pé a iniciativa das autoras de valorizar segmento da literatura que por muito tempo ficou em segundo plano, inclusive no século passado. Um deles é o estudioso em cordel Gustavo Dourado, que já perdeu as contas de quantos folhetos escreveu, já que arriscou os primeiros versos aos 3 anos de idade. A única ressalva que ele faz sobre a  trama, a qual acompanha, é o tema utilizado, que envolve apenas a realeza, elemento típico dos primeiros cordéis. Se fosse baseada nos atuais, que priorizam a realidade e criticam temas como miséria e corrupção, a novela retrataria ipsis litteris o cordel.

O que não se sabe é que os folhetos não inspiram apenas histórias de televisão. Segundo Dourado, também foram matéria-prima para centenas de manifestações artísticas. Um dos setores mais influenciados foi o da música, por meio de cantores como Elba Ramalho, Belchior, Fagner e Lenine. No set list está Pavão Misterioso, de Ednardo, uma das canções mais populares inspirada nessa literatura.

Mas nenhum é mais defensor da arte do que o paraibano Ariano Suassuna. Tanto que um de seus personagens de maior sucesso, o debochado João Grilo, de O Auto da Compadecida, saiu da literatura de cordel escrita em 1932 por João Ferreira de Lima. Ele trabalhou tanto para que esta cultura permanecesse que, ao completar 80 anos, ganhou um cordel de Gustavo Dourado: “Oito décadas de Ariano, quintessência social, por justiça e liberdade, sua arte é vital, Ariano é um luzeiro, da cultura nacional”.
Ariano seguiu a corrente iniciada pelo historiador potiguar Luis Câmara Cascudo, que dedicou-se ao estudo da cultura brasileira e fez com que o cordel fosse valorizado. Após seu incentivo, nomes como José Lins do Rego, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto também apaixonaram-se pelo formato. O resultado de seu empenho? Fomentou-se a indústria de  jornalistas, digo cordelistas. “Porque cordelista hoje é jornalista por excelência: questiona, critica e escreve”, define Dourado.

 
Antídoto contra ignorância

A falta de informação era uma realidade da população nordestina nos séculos passados. Desde que o primeiro cordel foi escrito, em 1893, pelo paraibano Leandro Gomes de Barros – o mais famoso cordelista brasileiro, conhecido como rei da poesia do sertão –, os folhetos passaram a levar às pessoas os acontecimentos locais. Isso se dava da seguinte forma: reuniam-se familiares em volta daquele que fosse alfabetizado, com o papel de orador, e contava-se tudo o que acontecia no mundo e nos meios políticos local e social. Os cordéis tinham, geralmente, de 8 a 32 páginas – o mesmo que hoje.

Ao fazer uma pesquisa sobre quem foi que colaborou para a ratificação desta literatura no Brasil, há inúmeros nomes, além de Leandro e Câmara Cascudo: Apolônio dos Santos, João Martins de Athayde, Firmino Teixeira do Amaral, José Pacheco, entre outros. No quesito xilogravura, técnica que usa madeira e ilustra quase todos os folhetos, o mestre é J.Borges, que também arriscou uns versos.

Com o crescimento da audiência do rádio e a chegada da televisão na década de 1950, essses homens foram deixados de lado. Perderam espaço para a imagem, que informava de forma rápida e não requeria alfabetização.

Essa realidade é constatada ainda hoje, embora o cordel tenha ganhado espaço até na internet: pesquisa recente feita pelo Instituto Pró-livro aponta que, no tempo livre, apenas 35% dos entrevistados priorizam a leitura de livros. Quem dirá, cordéis. Ainda assim, as páginas de relacionamento e sites da internet têm sido grande aliado para difundir esse tipo de literatura, porque são elementos gratuitos e de longo alcance. “Ele  influencia até a televisão, inicialmente sua inimiga. Com o novo elemento da internet, o cordel se adaptou e está ganhando nova feição”, analisa Dourado.

 

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Manoel Moreira Júnior é destaque na arte do Cordel. Foto: Divulgação

VALORIZAÇÃO DA ARTE

A literatura de cordel foi feita, pela primeira vez, no século 19, mas só no fim da década de 1980 que o estilo ganhou uma academia que reunisse todo o trabalho em prol dessa tradição, com sede no Rio de Janeiro, e que serve de base para a equipe do folhetim. O presidente da entidade, Gonçalo Fe



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