Zurique de dadá e din-din

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Eduardo Chaves

Foto: Divulgação
Charmosa cidade suíça tem a essência cultural como cartão de visitas. Foto: Divulgação

Pegue um jornal, uma tesoura, recorte as palavras de qualquer artigo aleatoriamente, coloque-as em um saco, agite e tire os pedaços de papel, um após o outro. Copie cada vocábulo na ordem em que for retirado do saco e pronto: eis a obra dadaísta de um escritor infinitamente original, ainda que incompreendido do grande público. Com essa receita de poema aleatório deu-se a largada ao movimento artístico mais contracultural de todos os tempos, espécie de antiarte que pregava a falta de lógica, a desordem, como forma de expressar o caos provocado pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. A palavra dadá aparece impressa pela primeira vez na publicação Cabaret Voltaire, lançada em Zurique, na Suíça, em 15 de junho de 1916. E, ao contrário do que prega a própria corrente, a escolha da cidade não foi obra do acaso. Neutra ante o conflito mundial, Zurique tornou-se ponto de encontro de numerosos intelectuais e artistas contrários à guerra, além dos então exilados Lênin, Radek e Zinoviev.

“Revoltados pela carnificina da guerra de 1914, devotamo-nos, em Zurique, às artes. Enquanto as armas de fogo rugiam à distância, cantávamos, pintávamos, fazíamos colagens e escrevíamos poemas com toda a nossa força. Procurávamos uma arte de base, a fim de curar a loucura da época”, justificou o pintor, escultor e poeta Hans Arp (1887-1966), considerado uma das figuras de proa do dadaísmo.

Ironicamente, quem circula hoje pela charmosa cidade suíça não encontra desordem nem tendência à contracultura. Pelo contrário: tudo lá parece minuciosamente planejado, desde as pontualíssimas linhas de bonde até o sistema previdenciário, que chega a pagar R$ 18 mil mensais de seguro-desemprego.

Entre seus 350 mil habitantes há descendentes de 170 nacionalidades que convivem em perfeita harmonia, sendo que um terço da população é de origem estrangeira. Não à toa, o país apresenta quatro idiomas oficiais – alemão, italiano, francês e romanche. A veia cultural, por sua vez, se revela em mais de 100 museus e galerias de arte. Há quem diga que a cidade possui mais salas de cinema do que Nova York. E as críticas dadaístas à sociedade burguesa cederam espaço para uma profusão de instituições bancárias. Só em Zurique há cerca de 360 bancos, famosos pelo sigilo que garantem aos seus clientes.

Definitivamente, a palavra na ponta da língua foi de dadá para din-din. E haja francos suíços para torrar na Bahnhofstrasse, principal rua da cidade e um dos mais cobiçados polos de compras de luxo do mundo. Grifes como Armani, Ermenegildo Zegna e Gucci disputam as atenções com vitrines fartas em canivetes Victorinox e relógios Rolex. De quebra, o turista ainda pode entrar na confeitaria Sprüngle para conferir o lado mais doce de Zurique. A única coisa salgada por lá são os preços. Mas, em meio a trufas, macarons e bombons de recheios variados, fica difícil economizar, até porque os valores mantêm-se à altura da qualidade do chocolate.

Para quem não resistiu às tentações da Sprüngle, uma boa forma de queimar as calorias e compensar o rombo no bolso é percorrer o resto da cidade de bike. Há seis postos onde é possível pegar uma magrela emprestada e devolvê-la em qualquer outro ponto, mas quatro deles só funcionam de maio a outubro, quando o calor torna as pedaladas ao ar livre mais atraentes. Um caução de 20 francos suíços é exigido na retirada e reembolsado no momento da devolução.

Também é no verão que os 18 balneários formados pelas águas do Rio Limmat enchem de gente. Tem até uma piscina pública murada exclusiva para mulheres. Todos de águas tão cristalinas quanto as que alimentam as mais de 1.200 fontes espalhadas pela cidade, sempre próprias para o consumo. De sede os ciclistas não podem reclamar... E nem de estarem perdidos. A Igreja Fraumünster desponta na paisagem como inconfundível ponto de referência. A construção, do ano 853, abrigou o primeiro convento do país e chama atenção pelos vitrais assinados por Marc Chagall, que teve de apagar a imagem da Virgem Maria em um deles para agradar aos protestantes e só concluiu as obras em 1960, aos 80 anos.

Na parte de trás da igreja, um arco de pedra revela outro traço curioso da época: para evitar que as mulheres usassem roupas extravagantes demais, o pastor sugeria que as devotas passassem pela cavidade. Se o vestido raspasse nas laterais, era sinal de que a peça estava pomposa demais para a sobriedade protestante. Outro ponto de referência é o relógio instalado na torre da Igreja St. Peters – o maior mostrador da Europa, com 8,64 metros de diâmetro. E se ainda assim você se sentir perdido, vá até a Catedral Grossmünster e encare os 187 degraus que levam ao topo da torre, de onde se tem a melhor vista panorâmica da cidade, em 360 graus. Foi lá que, no século 16, o pastor Huldrych Zwingli semeou a Reforma Protestante em solo suíço com uma visão tão crítica quanto a dos dadaístas de quatro séculos depois.


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Aos poucos o turista se acostuma com o s preços non-sense e com o estilo metamórfico de West. Foto: Divulgação

ZÜRICH WEST

Se Zurique é o berço do dadaísmo, o bairro pop-underground-chique de Zürich West é a síntese desse conceito por excelência. Em processo de revitalização, o antigo distrito industrial mais se assemelha a um barulhento canteiro de obras em caos permanente.

Nada lá parece fazer muito sentido. A começar pela Freitag, loja situada dentro de um amontoado de contêineres que chega a cobrar algumas centenas de francos por uma carteira surrada, feita de material reciclado encontrado em estradas, como a lona de um caminhão. Impossível olhar para os caríssimos objetos à venda e não associá-los ao ready made, expressão dadaísta criada em 1913



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