Dores do corpo

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Raquel de Medeiros e Willian Novaes

Foto: Divulgação
Em flats e ruas de bairros nobres de São Paulo, jovens se rendem ao sexo em troca de dinheiro. E convivem com solidão, violência e preconceito. Foto: Divulgação

 A vida parece fácil. Carros, joias, roupas, apartamentos e parceiros à vontade. Isso tem um preço. E caro. Dignidade abalada, depressão, vícios e medo de que o segredo seja descoberto. Assim é a vida de garotas e garotos de programa em São Paulo.

Elas mais que eles, têm que ter fôlego – e estômago – para encarar até dez programas diários. O saldo no fim do mês chega a mais de R$ 10 mil na conta bancária. O vazio da alma, no entanto, existe. E é depositado em compras, exercícios físicos, tratamentos estéticos e pensamentos de um futuro melhor.

As dores, na maioria das vezes, não se refletem nos corpos talhados e esculpidos, mas na mente. “Difícil aguentar tudo isso. Uma escolha que tem data para acabar”, diz Karina, 27 anos, loira, que adora frisar que tem 103 centímetros de quadril. Ela trabalha de terça-feira a sábado em casa noturna no centro da Capital, frequentada por executivos. Para a mãe, diz que seu emprego é em um hospital. A  jovem  cobra em média R$ 300 por programa e sabe se comunicar em inglês e espanhol, além de ser formada e pós-graduada em Administração de Empresas pela FGV, uma das universidades mais conceituadas do País. “Era auditora em uma administradora de cartões de crédito, mas faltava tempo para mim. Agora pretendo quitar minha casa e largar isso aqui até 2013.” Sobre os problemas que a faz pensar na aposentadoria estão as humilhações pelas quais tem que passar. “Tem homens que pensam que sou boneca, fazem tudo o que se possa imaginar. Inclusive, em alguns casos, são violentos.”

Para o carioca Márcio, 23, esse mundo é maligno. Ele se prostitui há dois meses na região do Parque Trianon, na Avenida Paulista e conseguiu um salário de R$ 14 mil nos últimos 60 dias. O local é um dos mais tradicionais da Capital, frequentado por garotos de programas e gays. “É insuportável estar aqui, mas qual é a minha outra opção para ganhar essa grana? Não dá para ficar careta. Esse lugar é um lixo. O clima é pesado, não sei o dia de amanhã.”

Os jovens disseram à Dia-a-Dia que estão nesta vida para bancar vícios e compulsões,  por roupas, automóveis ou droga. “Não tem como não usar. Tem cliente que passa aqui apenas para cheirar (cocaína). O dinheiro vem fácil, mas some do mesmo jeito que veio”, diz Bruno, 21.

A sensação é que estão sempre fugindo de algo. As garotas, mais ambiciosas e racionais, têm na ponta da língua o motivo pelo qual entraram na profissão. A maioria diz pensar em largar a prostituição para abrir negócio próprio ou, simplesmente, casar e mudar de vida. 


PATRÍCIA DIAS: A NOVA SURFISTINHA

O flat é pequeno. A sala, com a TV ligada, tem sofá e mesa de jantar para duas pessoas. No bar, bebidas e doces. Dali é possível ver o quarto que, com a porta entreaberta, expõe a colcha vermelha bagunçada em cima da cama. No banheiro, toalhas brancas usadas estão no chão.

“Não liga para a bagunça, um cliente acabou de sair”, explica Patrícia Dias, 24 anos, que há nove descobriu maneira de ganhar dinheiro rápido. Por ali já passaram homens de todos os tipos: altos, baixos, feios, bonitos, gordos, magros, velhos e novos. Para ela, o pior é quando são malcheirosos. “Peço para tomar banho. Às vezes, o cheiro não sai e tenho que ir para o chuveiro dar banho no cara.” A maioria é casada.

Patrícia – morena, cabelos longos até a cintura, seios fartos e rosto de garota – vai pra cama com quatro deles por dia, em média. “Meu corpo é que vai me dizer a hora de parar.”

A ideia surgiu lendo os classificados de um jornal. Na época ela dava aulas particulares de matemática e ganhava mal. “Quando comecei a trabalhar tirava R$ 400 e sobrava R$ 200”. Precisava de dinheiro para ajudar em casa. O anúncio dizia: ‘ganhe de R$ 2.000 a R$ 3.000 por semana’. Fui seduzida pela grana”, explica.

A primeira experiência foi aos 18 anos numa clínica de massagem em São Paulo. Do primeiro cara com quem transou por dinheiro ela diz que não se lembra. “Acho que tenho um mecanismo de defesa na minha cabeça que apaga este tipo de lembrança, a fisionomia das pessoas.” Por dinheiro ela, que diz não ter nenhum vício, cheirou cocaína. “Por grana acabo quebrando regras. Um gringo pagou 1.000 euros para me ver usar, mas me arrependo porque passei muito mal.” Segundo Patrícia a única que ela não quebra é transar sem camisinha. Naquela época, ela chegou a comprar bolsas Louis Vuitton, de R$ 7.000 cada. Hoje é mais contida. Não se atém a marcas, tenta cuidar da saúde e pensa no futuro.

Patrícia é ágil e tem tino para negócios. Para alavancar mais clientes, criou um blog, bem ao estilo Bruna Surfistinha, onde detalha o dia a dia, porém, sem tanto apelo erótico. As fotos, por sua vez, mostram explicitamente o que o cliente quer ver.

Proprietária de um terreno e de uma loja de cosméticos, pretende ganhar dinheiro para investir em outro estabelecimento em breve, talvez uma franquia. Cursou três anos de faculdade de Matemática e um ano de Direito, mas parou por não conseguir conciliar estudos e trabalho.


COTIDIANO

No chão do apartamento havia um monte de peças de roupas e lingeries emboladas para ela arrumar. Enquanto conversava, ajeitava as toalhas dos clientes. De vez em quando, parava para entrar no blog e ver se o número de acessos tinha aumentado.

No meio de tudo isso, Patrícia ainda atendia os dois insistentes celulares que tocavam sem parar. “Oi anjo”, ela responde ao interessado com voz sensual. “Atendo num flat nos jardins. São R$ 250 por uma hora e meia. Conforme for rolando, vamos fazendo. O serviço é completo.” O texto pronto é a primeira forma de contato entre Patrícia e os futuros clientes. Por telefone ela consegue ter noção de quem vai aparecer por ali nas próximas horas. “Consigo perceber se é uma pessoa gentil, educada, pelo menos. Se começa a falar muita bobeira corto para mostrar como as coisas funcionam comigo.”



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