Confisco da poupança

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Sérgio Vieira e Willian Novaes

Foto: Divulgação
Trauma da inflação e do confisco da poupança persiste após 21 anos do malfadado Plano Collor. Foto: Diário do Grande ABC

1990. Naquela época, a Seleção Brasileira ainda era tricampeã mundial de futebol e se preparava para mais um fiasco na competição, realizada em gramados italianos. Ronaldo Fenômeno sequer tinha entrado na adolescência. Ainda valia a pena acordar cedo aos domingos para assistir a um brasileiro no pódio das corridas de Fórmula 1. O Corinthians estava prestes a, finalmente, ganhar seu primeiro título do Campeonato Brasileiro. A população se despedia das aventuras no mangue seco da quente Tieta, novela das oito protagonizada por Betty Faria, e começava a se apaixonar pela Rainha da Sucata, vivida por Regina Duarte.

Era justamente em esportes e em novela que a população tentava extravasar a angústia que enfrentava toda vez que tinha de abrir a carteira. Com inflação que beirava 1.400% ao ano, era difícil evitar a correria para os supermercados assim que o salário aparecia na conta-corrente do trabalhador. Demorar para ir às compras significava pagar muito mais caro horas depois. Isso sem falar no desabastecimento de mercadorias, que provocava a ira do dragão inflacionário, a popular hiperinflação, algo incompreensível para a juventude de hoje.

Na política, PT e PSDB ainda engatinhavam entre os caciques veteranos de PDS, PMDB e PFL. Boa parte do eleitorado havia, poucos meses antes, exercido pela primeira vez o direito de escolher o presidente da República. Em meio a figurões e estreantes em disputas, foi eleito, sob a pecha de caçador de marajás, o ex-governador de Alagoas Fernando Collor de Mello, do extinto PRN, que venceu o então sindicalista arredio Luiz Inácio Lula da Silva.

Mais do que vitória, o dia seguinte à sua posse – exatamente no dia 16 de março de 1990 – ficou marcado definitivamente na história  por conta de um desastroso anúncio, que mexeu com a vida de todo o País. A então ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, anunciou os tópicos do que era chamado de choque econômico e que atingia em cheio o que até então era tido como investimento sagrado e seguro do brasileiro: a caderneta de poupança. O golpe de 21 anos atrás pegou de surpresa todo o Brasil, que ficou cinco dias subsequentes sem dinheiro por conta do feriado bancário, sem imaginar tamanha decisão em poucas horas de governo.

A população acompanhou, atônita, entrevista coletiva de Zélia e de toda a equipe econômica do novo governo tentando explicar os tópicos do plano. O espanto maior veio no momento em que ela, finalmente, falou a língua do trabalhador. Ninguém acreditava, mas a ministra  acabava de anunciar, em rede nacional, o confisco de todos os recursos na poupança acima de 50  mil cruzados novos, que voltariam a ser chamados de cruzeiros pela terceira vez  na história.

Levando-se em conta a correção pelo IPC-A (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), do IBGE, a quantia corresponderia nos dias atuais a R$ 6.161,53, o suficiente para comprar apenas fogão, geladeira e máquina de lavar.

Daquele momento em diante, ninguém mexeria em um centavo acima desse valor, que só seria liberado 18 meses  depois. O que se viu, a partir daí, foi uma sucessão de passos mal explicados e o consequente tiro n’água, sem alcançar o que se desejava, que era o combate à inflação.

A decisão unilateral do governo não levou em conta o fato de que quem guardava recursos na poupança era, em sua maioria, o trabalhador da classe média, que procurava resguardar esforço de anos de suor em algo considerado intocável até então.

Contas-correntes e recursos no overnight, tipo de aplicação financeira com rendimento diário, passível de retirada já no dia seguinte, também foram atingidos pelo confisco de Zélia e companhia. Não precisou de muito tempo para se perceber que o Plano Collor tinha se configurado em retumbante fracasso.

Foram casamentos desmarcados, sonhos de compra de carro ou casa desfeitos, planos congelados, trabalhadores demitidos e quem se desfez de um bem para realizar outro negócio acabou sem capital. Todos foram incluídos na régua do governo federal e ficaram sem ter acesso a seus próprios recursos.


Noites sem dormir
Se Zélia sempre fez questão de dizer que ficou algumas noites antes e depois do anúncio sem dormir, talvez ela tenha demorado para adquirir consciência de que a decisão governamental deixou muita gente sem dormir tranquilamente durante anos.

Octávio Leite Vallejo, presidente do Sincodiv-SP (Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos no Estado de São Paulo), foi um dos prejudicados. Aos 71 anos, ele lembra daquele período como o pior de toda a sua carreira de revendedor de veículos. “Nunca passei tanto sufoco em minha vida.”

Vallejo era proprietário da concessionária Sandrecar, que teve dificuldade para entregar os carros adquiridos. Como financiamento de veículos era algo para poucos, o consórcio era a maneira de milhares de brasileiros alcançarem o sonho do carro zero-quilômetro. Naquele março, 103 clientes haviam sido contemplados. Situação de desespero para Vallejo: “Me vi sem dinheiro para arcar com os compromissos com a montadora e vários clientes me cobrando”, conta. “Tinha um cliente que foi até na Polícia Federal. Ele não entendia que eu também era uma das vítimas e não existia a possibilidade de resolver o problema dele e dos outros 102.” Vallejo só começou a se livrar do caos dois meses depois.

Sidnei Muneratti, presidente da Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André), foi outra vítima. Era diretor de recursos humanos da Pirelli, multinacional com 18 mil funcionários, e teve de tomar atitude drástica e inadmissível nos dias atuais: reduziu os salários por dois meses. “Foi uma época terrível para administrar. Muitas pessoas ficaram desestruturadas. A medida foi muito radical”, analisa hoje, lembrando que a decisão tomada pela empresa teve apoio de boa parte dos funcionários e do próprio sindicato.

 



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