Compaixão e fortaleza

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Miriam Gimenes

“Parece cocaína, mas é só tristeza”. O verso, da música Há Tempos, da Legião Urbana, está presente nas primeiras páginas do livro Tristeza em Pó (nVersos, 176 páginas, R$ 29, em média), que será lançado neste mês – já está à venda na versão on-line. Mas ele ecoa no ouvido de quem ‘devora’ a obra da primeira à última página. Daniele Toledo, autora da publicação, conta o seu drama de ter sido acusada injustamente de matar sua filha Victória, 1 ano e 3 meses, com cocaína na mamadeira. Uma mentira que a levou à prisão e deixou marcas profundas para o resto de sua vida.

O ano era de 2001 e Daniele, então com 16 anos, decidiu se afastar das drogas e começou a frequentar os Narcóticos Anônimos. Foi lá onde conheceu o pai de sua segunda filha ­– é também mãe de um menino, hoje com 13 anos – e, tempos depois, nasceu Victória, em julho de 2005. Sua boneca, seu grande amor. Prematura, a bebê desde os primeiros dias de vida lutou para sobreviver. Teve crises convulsivas constantes e, por conta disso, tomava remédios. Daniele chegou a ficar mais de um mês ao lado dela na UTI esperando pela sua recuperação.

A pequena seguiu doente e a moça deu entrada no Pronto-Socorro de Taubaté com Vitória nos braços. Saiu de lá algemada. A menina teve três paradas respiratórias e morreu. Após um teste rápido, os médicos acusaram a mãe de colocar cocaína na mamadeira. Os noticiários passaram a chamá-la de ‘o monstro da mamadeira’. Sem sequer ouví-la, sem medir a sua dor.

Daniele foi presa e torturada (chegaram introduzir uma caneta no ouvido dela, o que afetou sua audição e visão). Foram 37 dias em reclusão até o dia em que o laudo saiu: o teste havia dado um ‘falso positivo’ e o pó que estava na mamadeira, na verdade, era o remédio anticonvulsivo. Era inocente. Cercada por jornalistas e curiosos, saiu da cadeia direto para o cemitério. Foi levar flores amarelas para a pequena que não teve a chance de se despedir. E, desde então, sua vida não foi mais a mesma.

Perdeu a guarda do seu filho ­– já reaveu, mas ele até hoje faz tratamento psicológico –, entrou em depressão profunda, sofre com fraturas provenientes da agressão que sofreu nas celas e passou também a ter crises convulsivas. Toda história sempre tem os dois lados, esse é o princípio do jornalismo. Mas poucos deram a chance de contar o seu. Daniele diz que se estivesse frente a frente hoje das pessoas que a julgaram à época, perguntaria “se elas conseguem dormir, colocar a cabeça no travesseiro? Eles não de destruíram só uma vida. Foi de toda uma família.” E detalhe: até hoje ela não sabe a causa da morte da Victória.

Em um caso mais recente, em que um menino morreu afogado ao ser arrastado por um crocodilo em uma lagoa dentro da Disney, na Flórida, alguns culparam os pais. Uma mãe, que esteve no mesmo local com o filho uma hora antes do incidente, escreveu uma carta pedindo mais empatia com eles. “Nós nos tornamos uma nação que culpa e constrange os pais.” E lembrou da dor daqueles que foram lá para se divertir e pegaram um avião de volta para casa sem um dos rebentos.

Seu pedido tem fundamento. Em uma das passagens do Livro Sagrado, o apóstolo Lucas diz “não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados.” Faço minhas as palavras de Renato Russo na música que usei no início deste texto: compaixão é fortaleza.

 



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