O inferno é logo ali

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Vanda Moura

Há várias descrições – que permeiam diferentes religiões, filosofias e mitologias – do que seria o inferno. Morada dos mortos, trevas, lugar de sofrimento, de fogo, de tormento eterno são algumas. Mesmo quem não acredita que exista algo ‘a se pagar’ após a morte jura que a Cracolândia, em São Paulo, seria, de fato, o que mais se aproximaria do tal inferno. Difícil não se abalar com centenas de pessoas em meio ao lixo, à violência e presas ao ví­cio. A impressão é a de que são zumbis, portanto, sem sentimentos, sem al­ma, sem esperança. Enquanto a maioria tira as conclusões do seu sofá de ca­sa ao assistir às reportagens sobre a Cra­colândia, tem os que arregaçam as mangas e vão até lá tentar resgatar os seres humanos que vivem naquele sofrimento.

Os integrantes da ONG Vidas Recicladas fazem parte desse mutirão de esperança. Criada em 2004, a organização mantém vários projetos, entre eles, o Da Pedra para a Rocha, idealizado pelo pastor Rica, da Igreja Bola de Neve de Ribeirão Pires (Avenida Kaethe Richers, 694). “Um dia, vendo um programa de TV, percebi que poderia ajudar aquelas pessoas, afinal já fui usuário de drogas. No começo, fui tratado de forma hostil, um dos traficantes achou que eu era policial. Também já fomos recebidos com truculência, ameaçados de morte, mas persistimos e o trabalho já existe há três anos”, conta com orgulho Rica. Segundo ele, a Cracolândia é “um grande suicídio social”. “Cada um tem uma história diferente, um motivo que o levou até ali. Já conheci quem perdeu tudo em enchente e caiu nas drogas, gente carente, mas também artistas, médicos”, conta.

O grupo vai até a Cracolândia toda sexta-feira com alimentos, roupas e conforto. Às vezes, o carinho chega como um ombro para chorar ou dar conselhos. Além disso, a cada dois meses, são realizadas mega-ações, como grandes churrascos. A próxima está marcada para maio. “Temos equipe de voluntários treinados para realizar o trabalho. Tudo é feito com doação, por amor mesmo”, enfatiza. Agora o grande sonho do projeto Da Pedra para a Rocha é conseguir terreno e recursos para montar clínica de reabilitação maior para antender os depentes químicos. “Com uma pequena, localizada na Praia Grande, já conseguimos reabilitar vários. A luta não pode parar”, conclui.

DE TRAFICANTE A VOLUNTÁRIO

Basta rápida conversa sobre o projeto para encontrar histórias de superação e transformação. Beto, 42, é um dos personagens que se destacam. Ex-traficante e usuário de crack, hoje ele traz esperança aos dependentes com seu próprio exemplo de vida. “Comecei a usar drogas com 13 anos, me tornei traficante em Ribeirão Pires aos 18. Cheguei a ser internado, em 1992, mas aguentei ficar 15 dias só. Fui preso e conheci Jesus na cadeia. Quando ganhei a liberdade fui chamado para o projeto. Estou limpo há oito anos”, conta Beto, que trabalha com pintura, fazendo fachadas de prédios. “Consegui minha casa, meu carro, mulher e filho. Simplesmente não tenho palavras para descrever o tamanho da minha felicidade.”

Segundo o pintor, o projeto na Cracolândia é importante porque, além das doações materiais, os usuários voltam a se sentir cuidados. “Eles estão tão aprisionados no vício que esquecem como é jantar sentado à mesa, como é viver um Natal, uma Páscoa. Quando eles me escutam, criam um pouco de esperança porque enxergam que é possível sim voltar a viver em sociedade.” Beto acredita que nenhuma medida da prefeitura ou do governo vai adiantar na região se a mudança e a vontade de querer mudar não partirem do próprio usuário. “Eu decidi que tudo ia ser diferente de um dia para o outro e até hoje continuo firme. Eles precisam também de um apoio, claro. Muitos perguntam como vai ser após o tratamento e a gente responde que a luta é diária, mas que não pode perder a esperança, não podemos deixá-los voltar para a rua”, conclui. Quer saber mais sobre o projeto? Acesse vidasrecicladas.org. Ajuda com doações no Banco Bradesco (ag.2001/cc6702-4).

Tem história interessante para contar? Mande e-mail para minhahistoria@dgabc.com.br

 

 




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