A chave da corrente

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Rodrigo Mozelli

 Uma pessoa presa dentro de seu próprio corpo não consegue mostrar quem verdadeiramente é. Sente todos os dias, ao se olhar no espelho, que é peça de quebra-cabeça sem solução, que não se encaixa. Tal angústia já seria o bastante, mas ainda tem mais. Quando finalmente entende o que está acontecendo, passa a se submeter a tratamentos médicos, muitos evasivos, e precisa encarar enxurrada de preconceitos e padrões impostos pela sociedade para ter o direito de, simplesmente, ser vista como um igual. Ou até, pasmem: de sobreviver. Entre janeiro de 2008 e 2014, mais de 1.300 transexuais foram assassinados nas Américas Central e do Sul, sendo que a maioria dos casos aconteceu no Brasil. Os dados foram compilados e apresentados em julho de 2015 no relatório da Trans Murder Monitoring, projeto da instituição Transgender Europe que monitora os casos de assassinatos ao gênero transexual em todo o mundo. Parece trama de novela. Só parece. Na verdade, é realidade de vários transexuais que lutam para se ‘impor’ como pessoa feminina ou masculina. 

Vários são os casos de preconceito e atos violentos contra os transexuais. Um dos mais recentes diz respeito a Marianna Lively, 17, de Osasco, que começou a sofrer perseguições e ameaças após soldado vazar no Facebook fotos de seu documento de alistamento, constatando seu nome de batismo, David, além de imagens suas dentro do batalhão de alistamento. A garota registrou BO após o responsável pelo batalhão, segundo ela, ter pedido que “deixasse isso para lá”. “Não deixarei passar batido, pois não quero que outras pessoas passem pelo mesmo, ou até pior”, disse Marianna em seu perfil pessoal no Facebook.
 
Uma das definições para o termo transexual diz que é quem se identifica com o outro gênero. Alguns manifestam, inclusive, o desejo de fazer cirurgia no corpo para mudar de sexo. “Mas isso não é algo obrigatório. Depende da opção de cada um”, enfatiza a psiquiatra especialista em Psicologia Social, Daniela Torres de Andrade Lemos. A diferença para os travestis, por exemplo, é que esses desejam manter o órgão sexual de origem, segundo a definição adotada pela Conferência Nacional LGBT de 2008. De acordo com a psicóloga, perceber que se é transexual é um processo e, geralmente, é resolvido pela própria pessoa e não por especialistas. “Não é porque é menino e brinca de boneca que é transexual”, exemplifica.
 
Tal processo aconteceu com a andreense Cintia Oliveira, 25. Desde a infância sempre se vestiu e foi tratada como qualquer menina da sua idade. Algo que nunca quis. “Jamais me vi como uma garota, mas meus pais me tratavam como tal, o que eu até levava numa boa. Mas quando completei 14 anos, porém, comecei a me impor”, conta o agora Rodrigo Oliveira, atendente de telemarketing. A partir daquele momento, ele definitivamente assumiu seu desejo de ser homem, sendo apoiado por sua mãe. “Mas ela ainda me chama por meu nome antigo e me trata como mulher”, detalha. “A sociedade não entende, há falta de informação. Tanto que sofri preconceito, especialmente dos garotos na minha adolescência. Onde trabalho hoje, pedi para me chamarem por Rodrigo, mas acham que é só um apelido.” Para Gabriella Bueno, 30, empresária de Rio Grande da Serra, o processo foi parecido. Ewerton não gostava de ser menino na infância e, a partir dos 7 anos, já começou a perceber que tinha algo que não se encaixava. “Naquela época, comecei a me interessar por roupas, sapatos e acessórios femininos, como batons, brincos e pulseiras. Apenas minha mãe percebeu, conversou comigo e me levou na psicóloga. Ela não me repreendeu, apenas me apoiou da melhor forma possível”, recorda. Também nunca teve problemas no trabalho. “Meus clientes me aceitam e sou reconhecida por eles.” vez. Aos poucos, ficamos mais próximos e começamos a namorar. Isto já tem um ano e seis meses”, comemora a moça.
 
 
 
Rodrigo, que está passando por tratamento hormonal e está aguardando na fila por cirurgia, é noivo de Bianca, colega de trabalho, há seis meses.
 
A MUDANÇA
A transformação do corpo é o desejo de grande parte dos transe­xuais, que luta para adequá-lo a um conjunto de características psíquicas e comportamentais. Existem alguns processos para tanto. Além do tratamento hormo­nal, muitos recorrem à cirurgia de redesignação sexual, popularmente conhecida como mudança de sexo. No Brasil, é feita desde 1997, mas só começou a ser realizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde), em 2008. Até o ano passado, o Ministério da Saúde contabilizou 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 cirúrgicos na rede pública. Na região, o Hospital Estadual Mario Covas, em Santo André, é um dos seis do País autorizados a realizar tal procedimento. Em maio deste ano, fez a primeira readequação de homem para mulher pelo SUS.
 
Gabriella se submeteu à cirurgia em 2011, na Tailândia, um dos países que mais realiza o procedimento. Ela demorou um ano para se recuperar completamente por causa das cirurgias estéticas. “Apesar de ser doloroso, amei o resultado. Não me arrependo e faria tudo de novo”, conta. Leva-se, em média, três horas para a cirurgia de criação da vagina. A recuperação é rápida. Após operada, a paciente tem vida normal. Faz xixi sentada e tem prazer sexual. Só não pode ter filhos pela falta dos órgãos sexuais femininos internos. Do outro lado, geralmente mulheres ficam satisfeitas com a retirada dos seios e órgãos sexuais femininos. A neofaloplastia – co­nstrução do pênis – é rara. Rodrigo está na expectativa para realizar sua cirurgia, que deve ocorrer entre 2016 e 2017. Há quase sete meses, ele está no processo de ingestão de hormônios. Homem que quer virar mulher toma estrogênio, bloqueando a testosterona. A mulher que deseja virar homem apenas ingere hormônios masculinos.
 
Ele também está se consultando com psicólogo e psiquiatra, procedimento obrigatório e que dura cerca de dois anos. “Apesar de ser regra, é processo que não tem prazo. Quem deve julgar o tempo necessário são o psicólogo e a pessoa”, opina a psiquiatra especia­lista em Psicologia Social, Daniela Torres de Andrade Lemos. Assim que o terapeuta entende que a pessoa está apta psicologicamente para a operação, entra em cena o psiquiatra, que também dev


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