Na subida do morro é diferente

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Raija Camargo

Já pensou em conhecer mais a fundo o Rio de Janeiro? Tours por dentro das comunidades pacificadas, como o morro Dona Marta, estão sendo cada vez mais procurados por turistas; moradores são os guias oficiais do passeio.
 

''Favela, nunca vi coisa mais bela''. O sambista carioca Zé Kéti fez coro com Clara Nunes no verso que dá título a esta reportagem. Ele costumava dizer que a favela ficava “pertinho do céu”. Na contramão da visão idealizada pelos músicos, estes locais periféricos estampam páginas criminais sangrentas há anos, em que assuntos como chacinas, guerra entre policiais e traficantes mostram, na real, o cotidiano vivido nas entranhas dos morros do Rio de Janeiro.

Pouco desta realidade violenta mudou quando, em dezembro de 2008, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) se instalaram nas comunidades (hoje estão em 231 favelas). Lentamente nova história começou a ser escrita por lá. Apesar de a violência ainda ser registrada nos morros, cada vez mais estão deixando de ser campos minados e sendo incorporados nos roteiros turísticos de quem visita a Cidade Maravilhosa.

O assunto é polêmico – muitos cariocas, inclusive, torcem o nariz para o assunto –, mas o fato é que os cenários típicos das favelas com fios emaranhados, becos e degraus íngremes atraem turistas. E não é de se estranhar: o cenário viaja o mundo todo com a ajuda de filmes nacionais, como Tropa de Elite (2007), de José Padilha, e Alemão (2014), de José Eduardo Belmonte. Outro exemplo é o livro Abusado – O Dono do Morro Santa Marta (editora Record, 560 págs., R$ 60, em média), de Caco Barcellos, que, por meio de depoimentos, mostra o lado humano de bandidos e traficantes. Todo esse imaginário social desperta a curiosidade de brasileiros e estrangeiros que querem conhecer o País pelo viés de suas desigualdades sociais.

Agora é possível visitar este lado do Rio de Janeiro e desbravar lugares como o Complexo do Alemão e a favela Santa Marta com guias oficiais. As iniciativas são de projetos como o Favela Tour, oferecido por agências de turismo, que levam o turista aos morros, incluindo a Rocinha, maior comunidade do Rio de Janeiro com cerca de 70 mil habitantes.

Os visitantes buscam vivenciar, nem que seja por um dia, o clima das comunidades, admirar de dentro dos morros as vistas espetaculares e conhecer um pouco da cultura local. No Complexo do Alemão, por exemplo, o passeio no teleférico é o que mais atrai a atenção. O trajeto começa na estação de Bonsucesso e vai até a Palmeiras, a última do tour, que dura aproximadamente 15 minutos. Ao fim, é possível comprar souvenirs feitos por moradores. Vamos detalhar nesta reportagem os passeios turísticos do morro Dona Marta (ou favela Santa Marta). Confira como funcionam na arte ao lado.

NO MORRO SANTA MARTA É ASSIM...
A mitologia grega diz que tudo que o rei Midas tocava virava ouro. Trazendo o mito para o nosso contexto, Michael Jackson fez o papel de Midas para o morro Dona Marta. Em 1996, o astro pop gravou o clipe da canção They Don’t Care About Us, na tradução literal ‘Eles Não Ligam para Nós’, no mirante do morro, que hoje tem uma estátua de bronze em sua homenagem atraindo milhares de turistas.

Após dois anos da pacificação surgiu o projeto Rio Top Tour, como iniciativa de turismo comunitário, que contou com o apoio do Estado e de moradores que já trabalhavam com turismo ou tinham liderança local. O projeto visa gerar renda aos moradores da favela Santa Marta, muito procurada desde a gravação do clipe. Ao todo, no período da fase de testes do projeto, foram 60 mil visitas, sendo 60% dos turistas brasileiros e 40% estrangeiros, sempre guiados por moradores locais com qualificação de guias.

A blogueira Flávia Ferreira, 36 anos – mineira que mora no Rio há dez anos – visitou a comunidade no início do ano e aprovou a experiência. “Acho que é o tipo de coisa que todo mundo deveria fazer um dia, mas com um olhar de tentar entender aquela realidade. Apesar de ser a mesma cidade, é outro mundo. Falta saneamento e em algumas áreas é bastante sujo, falta muita coisa, mas as pessoas são iguais, na cidade e no morro”.

Salete Martins começou a enxergar um novo horizonte para sua vida quando, há cinco anos, fez curso e passou a guiar os turistas pela comunidade. “A demanda é grande, especialmente de setembro a março. Somos um total de 16 guias na Santa Marta”, conta Salete, que também é uma das criadoras do Contur (Conexão de Turismo em Favelas Pacificadas).

A associação entre guias de morros foi criada por causa da grande procura dos turistas. Os visitantes que vão ao Dona Marta também querem conhecer o Complexo do Alemão, a Rocinha e o Vidigal, então Salete os encaminha para os guias responsáveis pelos respectivos morros. A guia, que foi analfabeta até os 8 anos, sonha cursar faculdade de Turismo. “O passeio começa quando subimos no bondinho e descemos a pé. O turismo que eu pratico aqui é de base comunitária, levamos os visitantes nas lojas de souvenirs e não cobramos comissão por isso. Entendo que quero ganhar, mas que a minha favela também ganhe, senão vou ser mais uma exploradora. A gente que está aqui dentro quer que a favela ganhe como um todo”. Salete já guiou o ator norte-americano Bradley Cooper e o elenco do filme Se Beber Não Case 3, em 2013, quando vieram divulgar o filme no País.

Exploração, aliás, é assunto delicado quando se trata de turismo em comunidades carentes. Fotografar as casas e os moradores sem permissão é proibido. O ‘sáfari’ para registrar a pobreza é abominado pelos guias, que promovem interação cultural e troca que enriqueça a experiência de ambas as partes. Salete oferece em sua laje almoços para os turistas, que sentem o gosto de apreciar a vista do morro no verdadeiro estilo da comunidade, degustando comida simples e deliciosa brasileira, como um baião de dois, que custa R$ 35 para grupo de dez pessoas, incluindo sobremesa e bebida.

Os turistas têm ainda a opção de usar o bondinho para se locomover no morro, andar por entre os becos estreitos e subir degraus em desníveis, muitas vezes com esgoto a céu aberto. Este, na verdade, é o cotidiano de quem vive alí. “O bondinho é para morador”, enfatizou um senhor de aproximadamente 50 anos quando o grupo de jornalistas utilizava o serviço. Fazia sentido. Ele carregava um botijão de gás nas costas.

A jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite da Tintas Coral.

TOURS OFICIAIS
Riotur

Favela Tour
www.favelatour.com.br
Preço: R$ 65. 
Horário: Diariamente em dois períodos, às 9h e às 14h. 
Duração: três horas.&n



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