Sede de justiça

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Miriam Gimenes

Roger Abdelmassih foi um dos médicos mais famosos deste País. Responsável por ‘fazer nascer’ cerca de 7.500 bebês, o seu centro de reprodução humana era um dos mais modernos da América Latina. Mas a sua imagem ‘divina’ ­­– ele mesmo se denominava Deus – foi abaixo assim que algumas de suas dezenas de  vítimas criaram coragem e o denunciaram por assédio sexual e mani­pulação genética. Uma delas foi Vana Lopes, cuja ‘experiência’ inspirou o livro recém-lançado Bem-vindo ao Inferno – A História de Vana Lopes, a Vítima que Caçou o Médico Estuprador Roger Abdelmassih (Matrix Editora, 424 páginas, 49,90 em média), escrito por Claudio Tognolli e Malu Magalhães. 

Vana, à época estilista, era casada e já tinha uma filha adotiva. Após seis anos tentando engravidar naturalmente, sem sucesso, resolveu recorrer à inseminação artificial. Procurou refe­rências e elencou três nomes. Abdelmassih era o segundo. Com um discurso sedutor, convenceu ela e o marido a fecharem ‘negócio’.  Somente na terceira tentativa de inseminação percebeu o estupro e denunciou. Contraiu uma infecção, transmitida pelo médico, que quase tirou sua vida. E ela tentou fazer o mesmo, tempos depois. Mas encontrou forças, estudou Direito, e não sossegou enquanto não o viu algemado. Criou a ONG Vítimas Unidas, para qual a renda do livro será revertida, que reúne outras pacientes do ex-médico e planeja atender quem passou por abuso sexual. Confira, a seguir, a sua caça incansável ao algoz.

“Era casada e tinha uma filha adotiva. Mas queria engravidar e não conseguia. Procurei, então,  especialistas em fertilização e o primeiro foi o (Milton) Nakamura, já falecido. Pedimos, para conhecidos, uma segunda e terceira sugestões. O segundo nome era de Roger Abdelmassih, que estava na imprensa, parecia ser renomado. E ele, realmente, laçava a paciente, de uma maneira que só um psicopata pode fazer. Envolveu eu e meu marido porque dava a certeza da gravidez. Tanto que fechamos com ele e não ouvimos mais a opinião de ninguém. Fiz o tratamento como todas: são três tentativas, pagava-se todas de uma vez (cobrava cerca de R$ 30 mil). Só o vi na primeira consulta e no dia de colocar os embriões. Não percebi se fui violentada na primeira vez. Em todos os processos somos dopadas, é quase um processo cirúrgico. Tem todo o aparato de emergência, há risco de vida, inclusive. 

Não se avisa, mas agora sei. Não engravidei. Na segunda tentativa, o mesmo processo, só que desta vez engravidei. Imagina o que é isso para um casal que está há quase seis anos tentando um filho. Perdi dias depois, mas fui para essa terceira tentativa muito esperançosa. E nesta vez ele me deu um calmante como sempre fez. Não sei exatamente se foi coisa divina ou não, mas o remédio não fez o efeito o tempo todo. Acor­dei antes que ele terminasse o ato (sexual). Não fosse isso nem teria sabido. Eu estava vendo aquilo e não conseguia me mexer. Quando consegui levantar, me afastei, vesti a  roupa e saí desespe­rada. Tive a reação normal de quem passa por isso, queria me lavar, sair correndo, gritar. O taxista viu meu estado e su­geriu que eu fosse a uma delegacia. Fiz a denúncia e os exa­mes. Só que sete dias depois (do estupro) tive uma febre muito alta e fui internada. Como ele fez sexo anal e vaginal, me passou uma bactéria Escherichia coli, que causou peritonite aguda (inflamação no tecido que reveste a parede interna do abdômen e recobre a maioria dos órgãos da região abdominal). Fiquei 40 dias internada com infecção generalizada, abriram minha barriga, mas sobrevivi. Depois que me recuperei, voltei à delegacia, mas nunca deu em nada.

Eu era estilista, muito criativa e naturalmente isso me afetou profissionalmente, não consegui criar mais nada. Mexeu com o emocional. Como não deu certo a denúncia, resolvi estudar Direito. Também pensava que só tinha acontecido comigo, me culpava. Cheguei a 140 quilos. Achei que ficando feia, gorda, estaria protegida de qualquer violência. Em 2009 fui denunciá-lo de novo e foi uma apreensão muito grande. Tive de mostrar o rosto, ir à imprensa, isso não foi fácil para mim, comia mais ainda. Imagina ficar frente a frente com a pessoa que te estuprou? A vontade era de bater nele, mas não podia. Após a denúncia de outras vítimas, ele foi preso. Mas o ministro Gilmar Mendes  (presidente do Superior Tribunal Federal) soltou o homem (no mesmo ano, e ele pode aguardar a conclusão do processo em liberdade). Em 2010 foi condenado a 278 de prisão e  achei que a justiça tinha sido feita, mas ele pode recorrer em liberdade (e em 2011 conseguiu fugir do País).  

Eu estava no quarto ano de Direito, tinha sofrido muita coisa, até ameaças, e desenvolvi pânico. Parei de sair.?Não tinha coragem de ir até a esquina. Fiquei dois anos dentro da minha casa e dois anos em uma clínica em tratamento. Mas como não tenho pânico de computador,  resolvi caçar ele para colocar onde tem de ficar, na cadeia. Chamo isso de legítima defesa. Montei uma rede de informantes na internet e de dentro da minha casa o cacei (por meio de uma rede social ela recebeu várias pistas e denúncias do paradeiro do médico e repassou para a Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo). Quando soube pelos meus informantes que ele havia sido capturado no Paraguai (em agosto do ano passado) primeiro estourei uma champanhe e, em seguida,  tomei as providências para ir ao aeroporto. Queria ter a certeza de que ele tinha sido mesmo preso. Assim que o vi, falei ‘bem-vindo ao inferno’, porque ele se dizia Deus. Falava que Deus mandava no céu e ele na Terra, porque gerava crianças. Ele, covarde, abaixou a cabeça e foi. Sou separada e evito contar detalhes sobre isso porque a violência não era só com a mulher, ele estuprava o casal. Ele acabou com muitas famílias e não é fácil lidar com isso. Hoje, graças a Deus, tenho uma vida normal e já perdi 70 quilos. Sei quais são os direitos e fui atrás dos meus. Fiz justiça com as próprias mãos, mas pintadas de esmalte, porque para isso não é preciso sujá-las de sangue.”

 




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