Das tripas coração

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Miriam Gimenes e Raija Camargo

 A expressão popular ‘fazer das tripas coração’ significa transformar as adversidades em forças. Ela usa dois órgãos vitais do corpo humano – intestino e coração – para mostrar o quão sobre-humano é esse esforço, principalmente para quem é determinado a superar os próprios limites. E é aí que mora o problema. Como disse o escritor português Virgílio Ferreira, ‘há o que tem limite e o que é sem limite. A arte é a forma perfeita da consciência destes opostos.’ Perdeu esse discernimento, o corpo é obrigado a clamar, literalmente, por ‘socorro’. Overtraining, vigorexia e rabdomiolise são algumas das consequências que esses excessos podem ocasionar.

 
Claudinei Plaza, fotógrafo do Diário, passou recentemente por um susto. Acostumado a praticar corridas de rua há pelo menos três anos, participou, no fim do ano, da São Silvestre (15 quilômetros) e, duas semanas depois, se inscreveu na 38ª Prova de Reis (10 quilômetros), em São Caetano. Só que, no oitavo quilômetro, desmaiou. “A sorte é que eu estava perto de uma ambulância e fui levado para o hospital (Albert Sabin). A rapidez no atendimento foi determinante.” Depois de desidratação severa e de ficar desacordado até as 17h (o desmaio foi às 8h30), ele acordou, foi levado à UTI do Hospital e Maternidade Dr. Christóvão da Gama, onde ficou por dez dias. O diagnóstico? Rabdomiolise.
 
O quadro é desencadeado por uma lesão muscular que resulta na morte de suas fibras. Quando elas começam a morrer, liberam na corrente sanguínea um componente chamado mioglobina. Essa substância é então filtrada pelos rins, que podem ficar sobrecarregados durante o processo, levando à insuficiência renal. “A rabdomiolise possui diversas causas. Ela pode ser ocasionada por trauma, calor ou esforço, além de doenças genéticas e metabólicas ou até por quadros de infecção e inflamação”, diz o endocrinologista e especialista em fisiologia do exercício e nutrologia Mohamad Barakat. Em situações mais graves, é necessário fazer diálise.
 
No caso de Claudinei, o excesso de exercício – emendou duas corridas seguidas e treinou bastante durante o intervalo –, a falta de preparação e alimentação incorretas ajudaram a desencadear o trauma. “Nós nunca imaginamos que este tipo de situação vai acontecer com a gente. É importante saber que com o corpo não se brinca e eu aprendi essa lição”, diz o fotógrafo. Segundo Elvira Maria Porto Alere Dancine, chefe da UTI do Hospital e Maternidade Dr. Christóvão da Gama, este tipo de problema pode acometer qualquer pessoa. “Neste caso (Claudinei) pode ter havido a seguinte situação: já ter entrado desidratado no evento e não ter feito hidratação durante, o que foi intensificado pelo calor excessivo (no dia da corrida o termômetro batia os 38°C). A pessoa perde água além do que ela poderia.” Quem passou pelo mesmo problema foi o cantor Alexandre Pires, em 2011, após exagerar em exercícios físicos.
 
O primeiro sinal, segundo a especialista, é a mudança de coloração da urina, que fica marrom. “Também é comum dor muscular além do natural, fraqueza nos músculos, edema e sensibilidade nos membros inferiores. Há paciente que chega a ter febre, agitação psicomotora e fica confuso”, alerta. Quanto mais rápido for feito o diagnóstico, como foi o caso de Claudinei, maior a chance da evolução positiva do quadro.
 
Para fugir deste tipo de problema, Elvira recomenda a preparação correta – se possível acompanhada por um profissional, hidratação e roupas leves. “Tem de testar os seus limites previamente, para ver o quanto suporta. Além de ficar atento durante as competições feitas com o clima quente.” Atletas de alta performance, acrescenta, podem fazer exames para testar a função renal e, se houver dúvidas por parte do especialista, recomenda-se um ultrassom.
 
O ditado popular diz que é a dose que determina se o remédio é a cura ou o veneno. O mesmo se aplica quando falamos em atividades físicas. Todo clínico geral recomenda que seus pacientes realizem exercícios aeróbios e musculares com frequência para melhorar a capacidade cardíaca e respiratória, aumentar o fortalecimento muscular, a postura, o alongamento, além de revitalizar a saúde como um todo e evitar doenças decorrentes da obesidade. Que sair do sedentarismo promove ganhos na autoestima e na qualidade de vida, é um fato incontestável. O que pouco se fala é sobre quando esse santo remédio vira ‘veneno’. Acertar a medida ideal de treinos e cargas é fundamental para não sobrecarregar o organismo com uma quantidade que será maléfica e pode acarretar danos.
 
OVERTRAINING E VIGOREXIA
A expressão overtraining, do inglês, que na tradução livre significa ‘excesso de treino’, é usada para especificar casos de pessoas que passam dos limites considerados saudáveis, sobrecarregando o corpo com quantidade de exercícios que não consegue suportar. “O quadro é caracterizado pelo excesso de sobrecarga nos músculos e, geralmente, ocorre quando a recuperação após a atividade física é insuficiente. Um grupo muscular treinado até a fadiga pode levar dez dias para sua recuperação. Descansar e esperar o corpo se recompor faz parte de qualquer treino”, explica Mohamed Barakat.
Normalmente, os sintomas são falta de energia, músculos doloridos, problemas com o sono, dores de cabeça, falta de apetite, humor alterado e podem ocorrer casos de depressão e ansiedade. Além disso, há a fadiga mental e a perda do sono reparador fundamental.“Sabemos que os treinos promovem, além de hábitos saudáveis e autoestima, a qualidade de vida necessária para estar de bem consigo mesmo. Apesar dessas qualificações, a intensidade com que fazemos exercícios físicos impacta na saúde de cada pessoa. O ideal é procurar ajuda médica para assim definir a necessidade de treino de cada indivíduo, que varia de acordo com características, como idade, condição de saúde e o objetivo”.
 
O overtraining pode acontecer com frequentadores comuns de academia e também com atletas de alto nível. O lutador de MMA Fellipe Lima, 24, de São Bernardo, enfrentou grave infecção nas pernas por decorrência do excesso de treinos. “Participei de um combate de muay thai e já tinha treinado muitas horas para essa luta. Em seguida, tive outro evento para lutar e não pude dar um descanso.


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