Cada vez mais subversivo

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Andrea Ciaffone

A câmera segue os passos de pernas esguias vestidas em calças de couro pretas muito justas que, de um lado, terminam em botas de cano alto e, do outro, em um traseiro que, ao se mexer, abala as estruturas musicais, estéticas e morais do Brasil desde os anos 1970. O dono deste corpo é Ney Matogrosso e a voz que ele emite já é patrimônio nacional. Ou seria o contrário? Na verdade, o pacote é parte indissociável da Cultura brasileira e pertence a todos nós, formam um legado artístico que mistura competência, sensualidade e inquietação.
 
“Sempre fui subversivo, mas minha forma de subverter vai muito além da realidade político-partidária. Meu interesse é mexer as estruturas sociais, comportamentais, instigar as pessoas a abrir suas mentes para a diversidade. Fiz muitas coisas que homem não podia fazer. Na verdade, toda vez que alguém me alertava que eu estava para ultrapassar as fronteiras do socialmente correto, aí era eu quem me apressava em cruzar estes limites”, admite Ney, durante conversa franca e bem-humorada com a Dia-a-Dia.
 
 
O artista tomou de assalto corações e mentes em 1973, quando explodiu nas rádios e telas da televisão com uma proposta visual e musical completamente inusitada. Pós-psicodélica, pré-punk, paralela ao rock, mergulhada no folk e parente do baião, a sonoridade do conjunto Secos & Molhados intrigava, embalava e seduzia. Mas era no visual que o quarteto desequilibrava: rostos pintados em branco e preto, figurino que misturava jeans, trapos e adereços que pareciam sobras de Carnaval numa Quarta-Feira de Cinzas – beirava o fantasmagórico.
 
A linguagem visual era uma espécie de enigma, coalhada de simbologias que se abriam a múltiplas interpretações, das quais ‘piração’ era a mais comum. Culminava na foto da capa do LP em que só as cabeças de Ney, João Ricardo, Gérson Conrad e do baterista Marcelo Frias (que desistiu da banda assim que o disco saiu) apareciam em pratos descartáveis sobre uma mesa numa espécie de alegoria de filme de terror. A direção de arte e as fotos da capa do primeiro disco foram criação do fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues, do jornal carioca Última Hora, que contou com a ajuda da banda para montar a mesa e que foi fotografada em uma única (e desconfortável) madrugada. O sacrifício valeu. A capa está listada entre as melhores do pop-rock internacional pela imprensa especializada.
 
E a gravadora não teve nenhum envolvimento. A banda entregou todo o visual do disco pronto. Fácil supor que a Continental não queria investir muito no disco, que foi gravado numa mesa com apenas quatro canais. A primeira tiragem foi de apenas 1.500 cópias. Nunca poderia imaginar que ele se tornaria um sucesso de vendas brutal, impulsionado pela aparição do grupo na estreia do Fantástico, na Rede Globo. Em dois meses, 300 mil cópias foram vendidas, em um ano, mais de 1 milhão. Só no Brasil. Isso sem falar que o trabalho foi lançado também em Portugal, Argentina e México. Naquele ponto, quase ultrapassaram as vendas de Roberto Carlos. E isso era crime de lesa-magestade. Coisa para ampliar o patrulhamento sobre aquele bando louco e estranho.
 
 
“Sou filho de militar. Sei tudo sobre essa coisa de regras. Mas, quando eu pintei a cara e criei uma persona de palco, esse meu desejo de ir além aflorou. Criei um personagem intuitivo e destemido. Quando deixei de ser eu, ganhei uma liberdade imensa”, conta. “Quando o Secos & Molhados surgiu, o momento era de grande tensão (referindo-se à ditadura militar). Sabia com quem eu estava mexendo e conseguir me expressar naquele contexto era uma vitória. Aparecer diante da plateia seminu requebrando e não ser preso surpreendia até a mim”, recorda-se. Ney, que tem na identidade o nome Ney de Souza Pereira e tirou o Matogrosso do Estado onde nasceu, não só não foi preso como continuou a surpreender o público e a quebrar a banca das probabilidades.
 
Mas a preopupação com o patrulhamento da censura numa época em que boa parte dos artistas estava no exílio, fez com que vários dos músicos que tocavam com o Secos & Molhados preferissem ser contratados e não integrantes fixos do conjunto, que lotava estádios e vendia além da imaginação dos executivos. Há, inclusive, a lenda de que a gravadora recolheu trabalhos de outros artistas que estavam encalhados e derreteu para ter vinil suficiente para imprimir o LP de estreia e atender à demanda dos fãs.
 
Porém, o gato preto cruzou a estrada do grupo entre o sucesso inicial e a continuidade. Depois de dois discos de pouca repercussão, cada integrante seguiu seu caminho. O de Ney, que não era compositor, só intérprete, ao contrário do que seria de se esperar, foi o do sucesso contínuo, total e ininterrupto até hoje. Ele subverteu a superstição e até as probabilidades mais frias. E não foi só no aspecto profissional.
 
 
Nos anos 1980, se estabeleceu firmemente como um dos intérpretes mais festejados da MPB e também como símbolo sexual – algo um tanto paradoxal quando se considera que a sua atuação de palco estava na contramão do que era considerado ‘masculino’ na época. Ou seja, ele subverteu a androginia do personagem que criou e se tornou uma espécie de LSD para a libido feminina.
Enquanto mexia com a imaginação das mulheres e enfurecia maridos chauvinistas, Ney se mantinha discreto sobre sua sexualidade. Mas quem frequentava a noite carioca sabia sobre o seu envolvimento com outros homens, dentre os quais o cantor Cazuza, que morreu de Aids em 1990. Ney chegou a afirmar que foi um milagre não ter contraído o vírus naquela época. “Teve semana em que eu fui em três velórios de amigos que morreram por causa da doença”, disse.
Foi nesta década que começou uma outra vertente do seu trabalho, atuando como diretor artístico e mentor de grandes nomes dos anos 1980, como a banda RPM e o próprio Cazuza. “Quando o Cazuza já estava bem doente, a concepção do show era baseada na presença dele, na voz. Então, eu disse para ele que não era mais preciso aquela coisa física dos primeiros tempos”, recorda-se.
Recentemente dirigiu a cantora Ana Cañas. “Mas só faço esse trabalho de curadoria e direção se


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