Janelas da alma

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Miriam Gimenes

Orlando Filho
Alex ficou com apenas 15% da visão e fez 30 expedições na Amazônia. Foto: Orlando Filho

O que era para ser um dia comum de trabalho para o fotógrafo Alex Silveira, de Santo André, mudou o rumo da sua vida. Recém-contratado pelo Agora São Paulo, em julho de 2000, foi para a rua com a missão de cobrir manifestação de professores na Avenida Paulista. De pacífica, a passeata ganhou ares de guerra. Uma das balas de borracha, disparada por um policial, acertou o olho esquerdo do fotógrafo – o único 100%, já que nasceu com problema congênito no direito. Restaram a Alex 15% da visão. “A maior perda é não poder dirigir. Além do olho, me cortaram as pernas.” Só agora, passados 14 anos, a ação que moveu contra a Fazenda Pública de São Paulo foi julgada. O fotógrafo foi declarado culpado. A Justiça alega, entre outras coisas, que ele se colocou no quadro da bala. A decisão gerou o movimento #somostodosculpados, aderido, na maioria, por profissionais da imprensa e artistas. Assim como os policiais, Alex estava trabalhando. Confira, a seguir, seu relato à revista Dia-a-Dia.  

“Lembro como se fosse ontem, infelizmente. Cheguei de manhã, tinham duas pautas, uma era de trabalho e a outra para fazer índios em Parelheiros. Já queria logo ir para o meio dos índios, porque amo isso (antes de virar profissional, Alex foi assistente do fotógrafo de natureza Araquém de Alcântara). Resolveram que tinha de ir para a pauta de trabalho. Cheguei lá, cumpri a primeira missão e ficamos para a passeata dos professores. Vimos o público acumular, a manifestação começou a rolar, até que um amigo falou: ‘o bicho vai pegar porque a Tropa de Choque e a Cavalaria estão na rua de baixo’. No meu ponto de vista, até aquele momento, estavam ali apenas de prontidão.
Chegou uma hora em que tinha muita gente, chutando por baixo, cerca de 20 mil pessoas em frente ao Masp. Os professores tomaram as duas pistas e começaram a sentar, tudo muito pacífico. Até chegar o Choque e a Cavalaria, que começaram a ‘descer o sarrafo’. No meio daquela confusão toda, estava em um canto da calçada e vi um policial sair da formação, vir andando com a arma na mão até chegar próximo de um professor, que estava com as mãos para cima. Ele mirou a dois metros de distância. Parei em cima dele, pensei que ia atirar. No terceiro clique, ele já estava olhando para mim. Deu uma recuada, virou para o meu lado, levantou a arma, eu abaixei a máquina. Ele saiu e voltou para formação.

Naquele momento, uma repórter estava ao meu lado e eu disse: ‘deu uma acalmada.’ Segundos depois jogaram uma bomba de lacrimogênio no pé dela. Puxei a moça e estava me virando para olhar onde eles (policiais) estavam. Pegou um tiro aqui (aponta para o olho esquerdo), nem senti. Na hora, a sensação era de uma picada de abelha, era a dor mais próxima que tinha sentido daquilo. Só que a ‘picada de abelha’ me jogou a meio metro de distância. Adormeceu tudo. Levei também um tiro nas costas que só quem viu foi o médico no hospital. Cai no chão, o povo tentou me puxar e, quando estavam me levantando, jogaram uma bomba em cima deles. Cheguei no hospital 20 minutos depois, totalmente cego. Botava a mão no olho e não sentia nada. Depois disso, fiz cinco cirurgias. Ficar quase cego não foi a maior perda, porque a gente se adapta. A maior perda é não poder dirigir mais. Além do olho, me cortaram as pernas.

Líder da tribo Kraho, Pedro Penon. Foto: Alex Silveira

Eu sou uma pessoa muito prática, não sou de sentar e chorar pelas coisas. Já me foi dito: ‘Por que não se aposenta por invalidez?’ Não me sinto um inválido. Sei que posso produzir, sempre fui estudioso. Antes de sair da Folha (pediu demissão), tirei folga e viajei para o Tocantins, onde organizei uma expedição. Fui para uma nação indígena, os Kraho. Fiquei por lá durante 45 dias. Aquilo valeu por 20 tarjas pretas. Voltei com ensaio que, para mim, é um dos melhores que fiz. Já conhecia o editor da National Geographic, Ronaldo Ribeiro, fui lá, mostrei o material e eles publicaram aqui, na Alemanha, no Canadá e na Austrália. Depois, passei oito anos no Amapá e foi a melhor experiência da minha vida. Foram mais de 30 expedições, com mais de 30 dias cada. Não me arrependo nenhum centímetro. Se alguém desse a chance de voltar e começar tudo de novo, provavelmente não mudaria uma vírgula. As coisas estão escritas. Se eu não conseguir fazer cinema (antes de estudar fotografia, esse era seu sonho), a minha vida vai acabar virando um filme.

Depois do período no Amapá, para onde pretendo voltar, fui para o Rio de Janeiro, estudei 3D, roteiro de cinema e estou me dedicando à arquitetura. E agora veio essa decisão da Justiça. Quando recebi o e-mail da minha advogada, li o tal do acórdão umas quatro vezes. Falei: ‘não é possível. Ou eu estou muito cego ou estão loucos’. Entre outras coisas, eles alegam que não saí do local na hora que começou (a manifestação). Se fizesse isso, perderia o emprego. Virei o tal do ‘boi de piranha’. Estamos em um momento em que está rolando muito processo parecido e o meu foi o primeiro neste sentido. Eles querem parar a coisa na raiz. O dinheiro nem é o meu objetivo, embora seja meu de direito. A briga toda é pelo precedente. O que mais me preocupa é a atitude. Agora, (com o movimento Somos Todos Culpados) isso deixou de ser uma coisa Alex Silveira versus Estado e está virando categoria contra a injustiça. É legal o pessoal ter essa consciência, porque se a coisa segurar dessa forma, estamos em uma ditadura velada.”




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