'Deixei tudo para cuidar da minha avó com Alzheimer'

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Miriam Gimenes

O Mal de Alzheimer, doença neuro-degenerativa que provoca a perda de funções intelectuais, afeta 25 milhões de pessoas no mundo, sendo 10% da população acima de 60 anos. 

ernando Aguzzoli Peres, 22, trancou a faculdade de Filosofia e saiu de um emprego estável para cuidar daquela que era seu porto seguro desde criança. A avó Nilva, que foi diagnosticada com Alzheimer, viveu os últimos seis anos de vida da melhor forma possível: dando risadas e cercada de amor. A história virou o recém-lançado livro ‘Quem, Eu? Uma Avó. Um Neto. Uma Lição de Vida’ (Editora Belas-Letras, 240 páginas, R$ 34,90). Leia relato exclusivo de Fernando para a revista Dia-a-Dia.

“... A história começa quando minha avó Nilva foi diagnosticada com Alzheimer, aos 73 anos de idade. Na verdade, parando para pensar, começou lá atrás, quando nasci já neto de uma avó incrivelmente coruja e dedicada. Aquela senhorinha italiana me recebeu de asas abertas, deixando de lado o momento mais divertido de sua vida para assumir o tricô, a cadeira de balanço e as pantufas de avó. Cresci com essa figura sempre muito próxima me passando diversas qualidades e ensinamentos que hoje carrego para a vida inteira. Uma mulher sempre forte, independente e com um passado de maus bocados. Porém, com o diagnóstico da doença, essa força virou fraqueza. A fortaleza desmoronava em medo e o passado estava cada vez mais próximo da realidade.

A primeira reação do brasileiro – que ainda pensa no Alzheimer como amnésia – é assustar-se com a realidade da doença. Perguntas como ‘ela vai me esquecer?’ ou ‘ela vai chegar ao último estágio?’ passam a fazer parte do nosso cotidiano. Um novo cotidiano. E acabamos por conviver com um constante medo do futuro, enquanto a vovó vivia no passado. Ou seja, ninguém estava de fato vivendo o presente. O diagnóstico foi complicado como sempre é, visto que ainda não dispomos de exame 100% assertivo. De acordo com a eliminação de hipóteses, o médico inicia a busca de um resultado. É possível diagnosticar a demência como mal de Alzheimer, mesmo existindo cerca de outros 60 quadros demenciais. A certeza de muitos deles se dá apenas depois da morte. Achávamos que o zumbido que ela sentia no ouvido todos os dias e o constante mal-estar eram o que ocasionava a confusão com os remédios para hipertensão. Depois descobrimos que a confusão era, na verdade, consequência do tal ‘alemão’ que entrou em nossas vidas para ficar.

Como sempre fomos próximos, eu e minha mãe passamos a cuidar da vovó com todo carinho, mas sempre respeitando a independência que lhe cabia. Ela morou sozinha até o último dia em que vimos ser possível, trazendo-a então para o nosso apartamento. A mudança foi tão sutil e no momento certo que ela sequer percebeu, passando a achar que havia morado ali por toda sua vida. Nessa época vi que minha mãe não estava sabendo lidar com o emocional de um ‘familiar cuidador’. É estressante passar os dias vendo aquela que te criou com toda garra do mundo precisar de ajuda até para tomar banho. Entendo a minha mãe! Mas eu já nasci tendo uma avó que considerava frágil e que sempre protegi. E foi por isso que decidi abrir mão da minha carreira no momento, trancar a faculdade de Filosofia e me dedicar aos cuidados com ela.

Foi uma aventura, certamente a melhor e mais intensa da minha vida. Vivi todas as emoções em um dia, mas hoje só o que me visita são o sorriso e a saudade boa. Muitos consideravam que seria um ano apagado ou desperdiçado para mim. Essas mesmas pessoas hoje conhecem minha história, entendem meus motivos e me apoiam por ter tomado essa decisão. Durante o período em que me tornei pai da minha filha-avó aprendi muito. Essa senhorinha me mostrou que enquanto há sensibilidade há vida, desejos, vontades, medos e todos os outros sentimentos possíveis. A humanidade e o bom humor de Patch Adams (médico norte-americano famoso por tratar os pacientes de forma diferenciada) passaram a fazer parte dos meus dias com a avó Nilva. O alto-astral resgatou toda a família da depressão, inclusive a vovó, que virou uma criança sapeca e travessa.

No final do ano passado minha amadinha partiu para um mundo onde o universo que ela tanto vislumbrava pôde finalmente se fazer real: o domingo com anões dançantes, unicórnios e arco-íris. Não há batalha que se perca para a morte. A morte talvez seja apenas a linha de chegada, a vitória de uma vida realmente vivida, o descanso final e merecido.”
 




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