Dama do Encantado

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Miriam Gimenes

Falou em Aracy de Almeida e a imagem que vem à cabeça é dela sentada em uma bancada de jurados fazendo o papel de algoz. Incorporou essa personalidade em diversos programas de televisão – no do Bolinha, do Chacrinha, de Pepita Rodrigues e do Silvio Santos. Mas a Araca, como era chamada pelos íntimos, que completaria um século de vida hoje, era dona de uma série de outros atributos, o principal deles cantar. E o fazia como ninguém. Não à toa, foi a principal intérprete de Noel Rosa, seu companheiro na boemia carioca.

E ninguém melhor para falar dessa mulher cheia de contrastes – que deixou 311 gravações – do que o amigo que conviveu com ela por mais de duas décadas, o cantor e compositor Hermínio Bello de Carvalho, que fez um perfil biográfico dela chamado Araca – Arquiduquesa do Encantado (Editora Folha Seca) há dez anos. Segundo ele, a fama de rabugenta que a cantora ganhou nas telas de TV não condizia com sua intimidade. “Aquilo era apenas um parangolé que ela vestia e que, de certa forma, atendia ao circo onde ela atuava”, lembra.

Para comemorar o centenário de Aracy, o amigo junto com os músicos Marcos Sacramento, Luiz Flávio Alcofra e o jornalista Alexandre Pavan fizeram espetáculo com histórias saborosas e músicas no Sesc Belenzinho, em São Paulo, no último fim de semana. O repertório foi de Noel Rosa (com Último Desejo, Coisas Nossas) a Caetano Veloso (A Voz do Morto).

Hermínio, que se encantou com a alma transgressora da cantora quando tinha 15 anos, destaca como diferencial seu timbre especialíssimo. “Com um nasal que inclusive chamou a atenção do poeta e crítico Mario de Andrade. Além disso, sempre esteve antenada com o novo. Lembremos que, na década de 1930, além de interpretar Noel, ela gravou Custódio Mesquita, Ary Barroso, Valzinho e tantos outros. Era atemporal. Adorava tangos, ouvia jazz, óperas (‘eu adoro aquele berreiro’, ela dizia).” Para ele, Aracy não pode ser analisada pelos prismas comuns.

Não mesmo. A mesma mulher que nasceu no bairro do Encantado – por isso era conhecida como a Dama do Encantado –, no Rio, começou a treinar a voz em hinos de igreja Batista mas, escondida dos pais, ia a terreiros de candomblé. Tinha um visual um tanto másculo – foi uma das primeiras a trajar calça comprida e usava cuecas samba-canção –, falava palavrões, mas mostrava os seios em boates. Dizia ter os “bofes azedos” à época de jurada, mas cantou o amor como poucas. Era, de fato, uma mulher de contrastes.

E em uma data como a de hoje, o coração de Bello aperta. Confessa sentir muita saudade da amiga, que morreu em 1988 vítima de um edema pulmonar. “Dos telefonemas, dos convites inusitados para sair nas horas mais impróprias, das esbórnias que ela promovia e eu a acompanhava com o maior encanto. Mas, sobretudo, suas vindas à minha casa, quando ela falava que sofria de vagotonia e colocava no colo um cachorrinho ranzinguento que eu tinha na época, chamado Francisco Lano Bello de Carvalho. Ficávamos horas jogando conversas ao vento. Vento esse que, espero, seja um bom memorialista.”

Aos que não conhecem a voz de Aracy, boa parte de sua obra pode ser ouvida gratuitamente na internet, na página do Instituto Moreira Salles. É só acessar acervo.ims.com.br e buscar pelo nome da cantora, que lá foi cadastrado como Araci. 




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