O que é que o baiano tem?

Envie para um(a) amigo(a) Imprimir Comentar A- A A+

Compartilhe:

Miriam Gimenes

Da esq. para dir.: Nana, Dori, Stella, Dorival e Danilo na casa da família no Leblon, Rio de Janeiro, na década de 1950

A tela estava em branco. Com cinco ou seis pinceladas, nasceu uma bela paisagem construída por areia branca, mar e pescadores. De tão perfeita, a imagem emite sons. De ondas, do jogar da rede... e exala o cheiro do sal. Os personagens têm nome. Um deles se chama Pedro, que ‘vivia da pesca e saía do barco às 18h. Uma arte para ser contemplada à exaustão. O autor? Dorival Caymmi, que completaria 100 anos neste mês. A pintura em questão está no encarte do CD comemorativo Nana, Dori e Danilo – Caymmi, da Som Livre, lançado no ano passado. Ninguém melhor do que ele soube usar de simplicidade – com letras e pinturas –, para expor muito além do que os sentidos podem captar. Sua obra, seja cantada, escrita ou pintada, é sine qua non para quem aprecia a cultura popular brasileira.

O amigo e admirador Caetano Veloso, em texto escrito para o livro Dorival Caymmi – Acontece Que Ele É Baiano (Repsol Sinopec), define a música do ídolo como algo imenso, embora tenha deixado repertório “pequeno” (cerca de uma centena). “As canções de Caymmi parecem existir por conta própria, mas a perfeição de sua simplicidade, alcançada pela precisão na escolha das palavras e das notas, indica um autor rigoroso. São o que as canções devem ser, o que as boas canções sempre foram e para sempre serão.” No set list do poeta dos mares estão O Que É Que a Baiana Tem?, O Mar, Acalanto, Saudades da Bahia, Só Louco, Marina, É Doce Morrer no Mar, Modinha de Gabriela, Maracangalha... Em suma, grandes clássicos do repertório nacional. 

A última, um de seus maiores sucessos, nasceu em uma sexta-feira de 1956. Estava pintando um autorretrato – “Sou lírico em pintura; gosto da harmonia das cores” – e lembrou-se do amigo de infância, Zezinho, que sempre dizia “Eu vou para Maracangalha”. Gostou da sonoridade da palavra e, após fazer o desenho que não o agradou, levantou-se cantarolando a obra-prima. Detalhe: ele mesmo nunca pisou em Maracangalha, minúscula cidade baiana que deixou o anonimato deste então.

Além de ter dado vida a três grandes nomes da música junto com a mulher, Stella Maris – Nana, 73, Dori, 70, e Danilo Caymmi, 66 –, o compositor baiano também difundiu aos quatro cantos do País, e para o mundo, os atrativos e qualidades de sua terra natal. Carybé, pintor argentino radicado no Brasil e grande amigo, resumia este seu dom em uma frase: “Caymmi é a Bahia em todas as suas facetas.” O jovem deixou Salvador em 1938 e desembarcou no Rio de Janeiro, então com 24 anos. Mas a Bahia não saiu dele. Embora tivesse a ideia de ser advogado, logo desistiu do previsto e enveredou na carreira musical, com repertório 100% soteropolitano.

Tom Jobim, amigo de longa data, conviveu por muito tempo com o ídolo. O filho, Dori, conta que Tom costumava pegá-lo em casa para passear de carro pelo Rio, só para ouvir suas ideias filosóficas. Era de uma sabedoria singular. “Às vezes vejo Dorival sair do mar, de pé, sobre as águas, apanhado (bem vestido) pela rede, coberto de peixes prateados, de conchas, siris, caranguejos, sargaços, pedaços de madeira, de caixote, algas. Dorival navega em pé, na canoa, no mar grande, em busca do mar novo, ao largo de Itaparica. Vai aos Abrolhos, no mar alto, em noite de temporal, e respira fundo a salsugem do largo. Vai a Copacabana e pratica o samba urbano. Só louco. O mar da Bahia o leva do Oiapoque ao Chuí, da Venezuela à Argentina, do Alasca à Patagônia, de Paris a Los Angeles”, declarou o ícone da bossa nova no disco Tom Visita Caymmi, de 1994.

No prefácio de Cancioneiro da Bahia, livro publicado por Caymmi em 1978, o escritor Jorge Amado, amigo-irmão e padrinho de casamento de Stella, atribui o talento e a genialidade do cantor a uma forte proteção. “Os orixás da Bahia possuem seus favoritos. Para eles, reservam o dom da criação e da grandeza. Assim aconteceu com o moço Dorival Caymmi. Os orixás cumularam de talento e dignidade esse filho da grande mistura de raças que nas terras brasileiras se processou e se processa, criando uma cultura e uma civilização mestiças que são nossa contribuição para o tesouro do humanismo. Baiano de picardia e invenção, Dorival Caymmi povoou o Brasil de ritmos e de beleza.” É tudo isso e mais um pouco que o baiano tem para fazê-lo tão importante não só para os íntimos, mas para todo o povo que ele sempre entoou com sua arte.

Carmem Miranda e Dorival Caymmi

DO MAR PARA O MUNDO
Recém-chegado ao Rio de Janeiro, o jovem Caymmi recebeu uma proposta: ceder os direitos de sua música O Que É Que a Baiana Tem? para que Carmen Miranda usasse no filme Banana da Terra, de 1939. Inicialmente, o nome escolhido para fazer a trilha do filme era Ary Barroso, com No Tabuleiro da Baiana. Mas como ele cobrou muito caro para ceder a melodia, lembraram-se do soteropolitano e solicitaram uma gravação para mostrar à cantora luso-brasileira. Ela não só gostou como pediu que o compositor viesse apresentar a ‘obra’ pessoalmente. Tornaram-se amigos. Ary, é claro, ficou mordido e a classe de compositores cariocas, com inveja. “A partir da letra da canção, a Pequena Notável criou o figurino que a consagrou internacionalmente, elevando logicamente o compositor ao estrelato”, pontua o professor da Escola de Música da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Carlos Ernest Dias.

O diferencial de Caymmi, segundo o especialista, era o fato de ele ser um fino cancionista, com a voz grave e semi-impostada, típica de sua época, e carregada de sensualidade praieira. “Dorival era um homem mestiço, nascido em Salvador, uma cidade importantíssima no contexto cultural das Américas do século 20. Portanto, podemos dizer que sua música é informada tanto pelo lado português e africano de sua mãe quanto pelo lado italiano de seu pai.”

A presença dos seus filhos no cenário musical da geração seguinte evidencia a força caymminiana. “Essa matriz influenciou muito Gilberto Gil, por exemplo, e também Tom Jobim, que por diversas vezes manifestou sua admiraç&at



Diário do Grande ABC. Copyright © 1991- 2024. Todos os direitos reservados