Poder Constituído

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Heloisa Cestari

Embora seja  a mais longa, com 250 artigos, Constituição de 1988 é recordista em emendas. Arte: Fernandes.
Durante a ditadura militar, o Brasil permaneceu sufocado sob uma Constituição imposta pelo governo federal, que cerceava os direitos individuais e sociais para atender ao interesses do regime, internalizados em conceitos como segurança nacional e restrição das garantias fundamentais. Tamanhos abusos fizeram crescer entre os brasileiros, ao longo do processo de abertura política, o anseio por dotar o País de uma nova legislação, que defendesse os valores democráticos. Nascia o movimento que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988. A despeito das controvérsias de cunho político e dos inúmeros trechos prolixos, a nova Carta promoveu um avanço no sentido de assegurar garantias ao cidadão, permitindo a participação do Poder Judiciário sempre que houvesse lesão ou ameaça aos direitos. Tortura e ações armadas contra o Estado democrático, por exemplo, passaram a ser qualificadas como crimes inafiançáveis, abrindo dispositivos constitucionais para bloquear golpes de qualquer natureza. A nova Carta também previu maior responsabilidade fiscal e instituiu aquele que é considerado o maior direito de todo cidadão: a possibilidade de eleger seus governantes por meio do voto direto, desde o cargo de vereador até o de presidente da República. Passados 25 anos, o soberano regimento vive a maturidade com diversas alterações em seu texto original. Foi o que mais sofreu emendas na história do Brasil. E caminha para várias outras modificações no sentido de se adaptar ao contexto socioeconômico da atualidade. Questões como sustentabilidade, relações homoafetivas e o Marco Civil da Internet, essencial para a regulamentação do mundo digital e punição a crimes virtuais, suscitam discussões acaloradas no Plenário. E a cláusula pétrea que define Legislativo, Executivo e Judiciário como poderes independentes e harmônicos, é posta à prova em meio às farpas frequentemente trocadas entre deputados e ministros do Supremo Tribunal Federal.
Para favorecer a reflexão sobre as transições promovidas na literalidade da Constituição, o advogado Caleb Salomão, graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo e professor de Direito Constitucional da FDV (Faculdade de Direito de Vitória), no Espírito Santo, compilou com outros três docentes uma série de artigos que deu origem ao livro Constituição 1988 – 25 Anos de Valores e Transições, lançado em novembro. Em seu texto, ele ressalta a importância de que a Constituição seja compreendida de fato pelos cidadãos, de forma que suas normas atendam melhor a todos. “Só assim será possível construir um País mais justo e igualitário”, justifica. Confira a seguir a íntegra da entrevista.
 
Salomão Caleb faz balanço dos 25 anos de Constituição em livro assinado por grupo de professores. Foto: Divulgação
DIA-A-DIA - A Constituição que vigorava antes de 1988 era do regime militar e, obviamente, não servia como ponto de partida para um país que acabava de consolidar o caminho para a redemocratização impulsionado pela campanha das Diretas Já. Nesse contexto, de 25 anos atrás, quais foram os maiores desafios para a convocação da Constituinte (que incluiu senadores eleitos em 1982, com mandato de oito anos) e a promulgação da nova legislação em meio à crise interna do PMDB, à ‘insurgência’ de grupos conservadores suprapartidários, como o Centrão, ao desgaste do governo Sarney e à escolha de Bernardo Cabral como relator?
CALEB SALOMÃO - O cenário político nos anos que antecederam a promulgação da Constituição de 1988 era marcado por uma pluralidade política decorrente da abertura, então recente, e dos efeitos da anistia ‘ampla, geral e irrestrita’, cujos atores opunham suas teses àquelas então valorizadas pelo sistema político. Penso ser correto dizer que as dificuldades próprias daquele momento foram acomodadas em um texto constitucional extenso e profundamente ambíguo. O texto constitucional, a meu ver, reflete os esforços dos constituintes para superar ou acomodar as crises ideológicas surgidas no enfrentamento de temas política, econômica e socialmente sensíveis.
 
DIA-A-DIA - Embora seja a mais longa da história do Brasil, com 250 artigos e mais 70 nas disposições transitórias, a Constituição de 1988 registra uma média de três emendas por ano. Como explicar esse grande número de emendas e de artigos alterados sucessivamente, como o 7º, referente aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que foi modificado três vezes (1998, 2000 e 2006)? 
SALOMÃO - As emendas à Constituição são os ecos das crises da constituinte. Feitos os arranjos de conveniência, que se prestavam a acomodar aquela pluralidade ideológica que marcava o Brasil em sua passagem do regime militar para o civil, estava previsto que os anos seguintes assistiriam às acomodações necessárias. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concentrou temas cuja instabilidade era notória, mas pode-se afirmar que a Constituição possuía no seus artigos principais um sem número de temas ‘transitórios’. As emendas em abundância são a evidência disto.
 
DIA-A-DIA - De que forma a recessão econômica da época, com alta inflação e dificuldade para pagar os juros da dívida externa, aliada à pressão dos lobbies na Assembleia e a uma demanda social reprimida, que desejava obter lucros a curto prazo, influenciaram o trabalho dos constituintes e a aprovação final da Carta? 
SALOMÃO - A complexa conjuntura econômica dos anos 1980 foi a grande responsável pelo design da nova Constituição, cuja arquitetura foi concebida tanto para assegurar os interesses dos organismos internacionais representantes de interesses privados em solo brasileiro, qua


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