Junto e Misturado

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Miriam Gimenes


Foto: Rafael Roncato/Divulgação

Não se nasce mulher: torna-se. A máxima de Simone de Beauvoir ratifica – e certifica – a reviravolta que o cartunista Laerte Coutinho, 62 anos, deu em sua vida há quase uma década. Nos últimos anos, principalmente a partir de 2009, ele vem construindo em doses homeopáticas a sua transgeneridade. Assumiu-se bissexual, entrou para o time dos crossdressing (homem que se veste de mulher) e tornou-se militante pelos direitos humanos. Mudou a vestimenta, o comprimento do cabelo, passou a usar acessórios e maquiagem, curte minissaia, mas até pouco tempo namorava uma mulher. Laerte é ele(a) mesmo: junto, misturado e por inteiro.
Um dos mais importantes cartunistas do País, o paulistano Laerte trabalhou para os jornais Gazeta Mercantil, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Colaborou também para as publicações Balão e O Pasquim, e as revistas Veja e Isto é. Criou, entre outras coisas, personagens de sucesso como Piratas do Tietê, Hugo e Overman. Durante o seu processo de mudança, alguns deles foram deixados de lado, menos o Hugo, que passou a chamar-se Muriel, porque também se travestiu.
Atualmente, está mais dedicado às causas de igualdade – desde o ano passado é uma das diretoras da Abrat (Associação Brasileira de Transgêneros), onde é conhecido como Sônia Cateruni. Participou, em abril, de um ato contra o deputado federal e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Marco Feliciano (PSC-SP), que propôs a ‘cura gay’. Como protesto, publicou uma tira chamada ‘beijaço’ na Folha, em que as pessoas foram retratadas o beijando. E convocou os colegas de profissão a defenderem a causa.
A ideia ganhou página no Facebook – com inúmeros adeptos ao selinho, ilustradores ou não – e já tem quase 15 mil curtidas. Virou hit, assim como o cartunista. Confira, a seguir, sua opinião sobre homossexulidade, regras da sociedade, coragem, universo feminino, militância pelas minorias, trabalho e futuro. O que ele pede é simples: quer apenas a liberdade de ser ‘a mulher ou o homem que quiser.’ Que assim seja.

DIA-A-DIA – É preciso ser corajoso para dar a reviravolta que você deu na sua vida? O que te motivou?
LAERTE COUTINHO – Não tenho como dizer. Fui dando os passos que considerei necessários e possíveis. Talvez não represente uma coragem tão grande aceitar a própria transgeneridade aos 60 anos de idade, ou o desejo sexual inclusive por homens aos 50. Coragem tem essa moçada que não abre mão de seus sentimentos, de sua natureza, mesmo pagando preços altíssimos por isso.

DIA-A-DIA – Como define seu gênero?
LAERTE – Considero gênero (isso de masculino e feminino) uma parte da cultura humana que faria muito bem em desaparecer. Me declaro como a Leticia Lanz: gente. Quero liberdade pra ser a mulher ou o homem que eu quiser.

DIA-A-DIA – O cerceamento da liberdade te incomoda? Quando decidiu romper as amarras da sociedade, sentiu alívio? Qual a sensação?
LAERTE – Quando falamos em cerceamento de liberdade, podemos estar nos referindo a muitas coisas. Essas amarras a que você se refere, por exemplo, como parte da sociedade, já fiz parte delas – ou de algumas. A reflexão, o encontro, o poder das ideias e dos fatos é que vão nos levando a esse rompimento com situações opressivas – muitas geradas por nós mesmas. E sim, dá um alívio!

DIA-A-DIA – Você já disse que um de seus defeitos é a procrastinação. Arrepende-se de ter demorado tanto para vestir-se como mulher ou isso aconteceu no tempo certo?
LAERTE – Não me arrependo porque o arrependimento não faz sentido. Fazemos o que estamos em condições de fazer, mesmo considerando as doses de ousadia que demonstramos. A procrastinação a que devo ter me referido é mais na área profissional ou de vida prática.

DIA-A-DIA – Em uma entrevista afirmou que está se acostumando a comprar roupas femininas. Como definiria seu estilo hoje?
LAERTE – Não curto a ideia de estilos. Parece um tipo de enquadramento, como o de gêneros. Um território para esquadrões e esquadrilhas. Gosto de considerar o universo das roupas da forma mais livre possível, pensando em coisas que me caem bem na medida em que expressam o que quero.

DIA-A-DIA – Existem horas que você se vê portando como homem, embora esteja vestido de mulher?
LAERTE – O que é ‘portar-se como homem’? E o que é ‘vestir-se de mulher’? Se eu considero questionável que existam roupas adequadas ou exclusivas do sexo feminino ou masculino, também estou questionando o que seja este modelo. Tanto no que se refere a roupas quanto no que se refere a comportamentos – gestos, modos, costumes etc.

DIA-A-DIA – Para você, o que é ser uma mulher? É um universo mais encantador que o masculino?
LAERTE – A Simone de Beauvoir disse, há décadas, que não se nasce mulher – aprende-se a sê-lo. Essa afirmação é uma das bases da história do feminismo e do pensamento humano no que se refere à questão dos gêneros. As sociedades organizaram, em lugares e tempos diversos, formas diversas para o que seja mulher e homem. Não faz sentido considerar um modelo cultural mais encantador que outro. Por que não ter encantamento para todos os arranjos?

DIA-A-DIA – Você tem rituais femininos, como passar cremes e cuidar dos cabelos? Acompanha lançamentos de maquiagem? Como aprendeu a se maquiar?
LAERTE – Tive umas aulas de automaquiagem com Dudda Nandez, em cujo estúdio eu e muitas outras ‘trans’ começamos a nos reconhecer. Curto meus cabelos compridos. Uso vários produtos, claro. Acompanho lançamentos com relativa atenção.

DIA-A-DIA – Você troca figurinhas com sua namorada sobre isso? Ela opina sobre suas roupas?
LAERTE – Não estou namorando, atualmente. Mas, enquanto estava, conversávamos sobre tudo, incluindo roupas.

DIA-A-DIA – Já faz tempo que você vem montando a mulher que se tornou. Além do aspecto físico, quais são as outras mudanças notáveis?
LAERTE – Esse processo – de reconhecimento da transgeneridade – começou em 2004 e vem se tornando uma vivência de maneir



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