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Heloísa Cestari

O francês Edgar Morin diz que o erro da humanidade é pensar isoladamente

Considerado um dos pensadores mais importantes dos séculos 20 e 21, o francês Edgar Morin defende a correlação de todos os conhecimentos, critica o reducionismo instalado em nossa sociedade e reflete sobre a dialética entre paixão e racionalidade; poesia e prosa. “Enquanto pensarmos isoladamente em economia, política, filosofia e psicologia, seremos incapazes de entender os problemas globais”, diz o pai da Teoria da Complexidade, que propõe uma radical metamorfose do processo educativo. Nascido em Paris em 1921, o sociólogo aderiu ao Partido Comunista Francês em 1941, participou da Resistência à ocupação nazista nos anos seguintes, mas acabou expulso da sigla na década de 1950 por seu posicionamento antistalinista, defendido quando já integrava o CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Aos 92 anos, Morin assina uma centena de livros, traduzidos em 27 idiomas e publicados em 42 países. Os temas vão desde a contemporaneidade dos problemas humanos, sociais e políticos até o eterno conflito entre árabes e judeus e a questão ambiental. Em entrevista exclusiva à Dia-a-Dia, ele falou sobre a Primavera Árabe, a espionagem norte-americana, as consequências da globalização e faz um alerta: se não houver um despertar de consciência da sociedade moderna, caminharemos como sonâmbulos para a catástrofe.


DIA-A-DIA – O senhor disse em uma palestra sobre a falta de fronteiras entre o homo sapiens e o demens. De que maneira se pode achar uma complementaridade nessa relação?
EDGAR MORIN – A definição da homo sapiência é unilateral porque a pessoa humana tem duas polaridades: a da racionalidade, lógica, e a da paixão, que os gregos antigos chamavam de loucura. Então sabemos hoje, pela biologia, que quando uma criança faz uma operação racional, o centro emocional de seu cérebro é ativado, porque não existe razão pura sem emoção. Mas se a emoção se desenvolve sem o controle da racionalidade, ela ocasiona a cólera, que é um pequeno delírio. Por isso, o problema permanente e mais difícil para o ser humano é a dialética, o jugo entre a paixão e a razão. Não existe razão sem paixão e não existe paixão sem razão. O amor, por exemplo, por ser a coisa mais lúcida, é também a mais cega, porque embora me permita enxergar todas as coisas interessantes da outra pessoa, ele ao mesmo tempo me impede de ver a sua parte obscura, duvidosa. Então, sempre se necessita de paixão com controle da razão. Sabedoria é também uma possibilidade de amor, de amizade, de paixão. E, em contrapartida, a razão fria precisa da participação do coração.

DIA-A-DIA – Um dos aspectos que o senhor considera é que a aptidão para a felicidade é a da infelicidade, e a aptidão para o gozo é a mesma da insatisfação. A gente procura o amor de maneira errada?
MORIN – Para eu ser feliz, preciso de um conjunto de condições, como amor, justiça, bem coletivo, conhecimento etc. E quando se perde essas condições internamente, perde-se a felicidade. Se você ama uma pessoa, isso traz felicidade, mas quando essa pessoa parte ou morre, isso gera infelicidade. Quando eu tinha 10 anos, minha mãe morreu. Isso foi uma infelicidade. Mas isso me permitiu viver outras duas grandes felicidades, porque depois da perda dela eu senti uma necessidade interna de amor que me fez buscá-lo em outras pessoas. Se eu não sentisse essa necessidade tão grande, provavelmente não teria encontrado essas outras felicidades depois. Então, o amor é um jogo de felicidade e infelicidade.

DIA-A-DIA – O senhor também diz que a vida é uma dialógica entre prosa e poesia, mas que privilegia a poesia, e considera que os seus diários são um pouco desse lado poético...
MORIN – Posso definir duas polaridades na vida humana: a prosa e a poesia. A prosa são as coisas que não nos agradam, mas que somos socialmente obrigados a fazer para sobreviver. E a poesia é a expansão da pessoa; é comunhão, amor, lazer. É evidente que a prosa nos ajuda a sobreviver e a poesia é viver. Mas não se pode eliminar uma delas da vida. Há muitos momentos ricos que ocorrem sem poesia. Penso que as pessoas necessitam não apenas de melhores condições de vida no que diz respeito a remuneração, trabalho, salário e subsídios sociais. Acho que também é necessário que a sociedade lhe permita gozar de momentos de poesia, de lazer. Ética, por exemplo, nada mais é do que a paz no modo como se dá a possibilidade de fazer poesia.

DIA-A-DIA – O senhor ainda tem hábito de registrar o cotidiano em diário?
MORIN – Terminei Diálogos Cotidianos há dois anos. Mas penso em voltar a fazer esses registros.

DIA-A-DIA – Como lida com os pequenos acontecimentos do cotidiano? Isso fica perdido quando não há registro? Como o tempo flui para o senhor?
MORIN – Para mim, a vida é feita de coisas muito pequenas que podem proporcionar uma grande emoção. Por exemplo, gosto muito de comer ovos cozidos por três minutos e meio. Uma vez que deixei passar dos quatro minutos, fiquei mal-humorado, como se tivesse acontecido algo catastrófico. Daí se constata que a vida de cada pessoa é totalmente descontínua, feita de pequenas coisas que causam grande alegria e outros grandes eventos que causam pouca emoção, como nos casos de uma inundação ou um terremoto. A tendência é de se esquecer ou ignorar essas coisas distantes e valorizar as questões egoístas, que só tiveram importância para a própria pessoa. Então, a sabedoria para mim é deixar de exacerbar as pequenas coisas próximas e ter emoção e consciência diante das grandes, porque temos essa tendência egocêntrica de achar que os problemas e questões pessoais são mais importantes do que os das outras pessoas. Mas o registro do cotidiano serve para eu objetivar a minha subjetividade e me conhecer melhor; é um modo de conhecimento de si mesmo, de autocrítica, se possível.

DIA-A-DIA – Estamos em uma era de globalização, em que as pessoas compartilham muitas informações pela internet, mas há pesquisas que mostram que os usuários, por terem uma



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