Chão de estrelas

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Heloísa Cestari

Foto: Celso Luiz

Chão. Como adjetivo, algo de pouca profundidade, destituído de ornatos, tão raso e trivial que chega a ser despretensioso, sem agitos ou complicações. Muito diferente das composições de Lenine. O chão que intitula seu décimo álbum é substantivo masculino desde a raiz: firme, franco, que se sustenta e serve de apoio a cada passo de quem inevitavelmente é atraído a pisar em sua superfície. Nada de frases chãs ou conceitos rasos. Para ouvi-lo, é preciso que a audição perca o chão por uns instantes para se acostumar com a ausência da língua da percussão que ditou o ritmo de outros discos e se deixe levar pelas sutilezas dos sons do cotidiano, pela vibração das cordas, pelo gorjear de um canário, o assovio de uma chaleira e o estrondo de um bater de porta. Sons tão comuns e estranhos quanto os seres que centrifugam na quarta faixa do CD embalados pelo barulho de uma máquina de lavar.

Permeado de ruídos orgânicos, o disco lançado em 2011 levou Lenine à indicação de melhor canção do Grammy Latino em 2012, com Amor É Pra Quem Ama, e o filho Bruno Giorgi, 24 anos, a concorrer na categoria de engenharia de som. E apesar dos dois anos de estrada, o trabalho mostra ter ainda muito chão pela frente. Afinal, no latifúndio do coração deste recifense de alma carioca há espaço para todo tipo de experimentação. Ainda mais em 2013, que ele classifica como um ano de “comemória” pelas três décadas de carreira contadas a partir do lançamento de seu primeiro CD, Baque Solto, composto em parceria com o conterrâneo Lula Queiroga. No dia 14 de setembro, os dois se reencontram no palco da casa de shows Baile Perfumado, na capital pernambucana, para ‘celembrar’ os 30 anos do álbum que revelou o maracatu silencioso de Lenine para o mundo e mais tarde o colocou na tropa de elite da música popular brasileira.

O cabalismo da data – e canibalismo musical – não param por aí, já que 2013 marca também os 20 anos de Olho de Peixe, rememorados em abril, no Rio de Janeiro, com uma gandaia de ondas ao lado de Marcos Suzano.

Embora não seja chegado a efemérides, o Leão do Norte planejou 30 maneiras diferentes de comemoração. Todas elas tão sui generis quanto as reentrâncias de seu chão. Entre os pontos altos da programação, vale exaltar as apresentações gratuitas com orquestras sinfônicas de diversas capitais, sob a batuta do maestro Ruriá Duprat, para aliar a estranheza dos recursos da quadrifonia de Chão à sonoridade dos instrumentos clássicos.

Outro destaque é a turnê The Bridge, que fez ponte histórica com o maestro holandês Martin Fondse em cidades como Moers (Alemanha); Roterdã e Nijemegen, na Holanda; Madri (Espanha) e Lisboa (Portugal), em maio. Um espetáculo extra está marcado para 24 de agosto, durante a Feira do Livro de Frankfurt, com entrada franca.

Assim como a ponte Mauricio de Nassau, em Recife, é uma réplica da que atravessa o Rio Amstel, em Amsterdã, a turnê européia faz um paralelo entre o Brasil e a Holanda através do encontro do pernambucano com a orquestra do holandês, que mistura elementos sinfônicos com jazz buscando inspiração nas obras de Björk e Duke Ellington.

O calendário ainda prevê show em Alagoa Grande, na Paraíba, pelo circuito Caminhos do Frio (dia 31), além da aguardada apresentação com a banda multiétnica de gypsy punk nova-iorquina Gogol Bordello no lendário palco do Rock in Rio, em 14 de setembro. “Também acabamos de entregar a trilha do novo espetáculo do Grupo Corpo”, completa Bruno. E como lembra a faixa derradeira de Chão, prepare seu coração, meu irmão, que isso é só o começo...

 

Foto: Nário Barbosa

FALANGE CANIBAL

Filho de uma católica kardecista e de um comunista militante que coleciona biografias de Jesus em meio a poemas de Augusto dos Anjos, Lenine aprendeu desde pequeno a misturar pandeiro com zabumba, Miami com Copacabana e chiclete com banana. “Minha mãe era católica macumbeira mesmo. O kardecismo veio depois. Já o meu pai, muito inteligentemente, me provou que a diferença do socialista para o cristão genuíno é que um trabalha para que depois da morte chegue o paraíso e o outro quer o paraíso agora, antes de morrer. Mas, sinceramente, não tenho noção de em quais dosagens entra o quê no meu trabalho”, disse à equipe da Dia-a-Dia momentos antes de subir ao palco em São Bernardo.

Criado à beira do mangue, entre livros de Marx e missas dominicais, empinando pipa e pegando guaiamum para fazer a caranguejada no fim de semana, “em uma ligação quase que uterina com o mar”, Lenine tornou-se a síntese dialética, antropofágica, entre as influências do rock internacional e a variedade do ziriguidum tupiniquim – que, longe de abarcar somente o samba, transita por terrenos que vão desde o baião de Luiz Gonzaga até a poesia do Clube da Esquina, passando pela sanfona do seu ídolo número um: Dominguinhos, que morreu no dia 23 de julho, após seis anos de luta contra um câncer de pulmão.

Aos 8 anos, Lenine começou a tocar violão. “Meus pais achavam que com essa idade o ser humano já podia escolher o que queria. Meu pai disse que a música também era uma forma de conexão com o divino e que eu poderia escolher se iria à missa com mamãe ou ficaria em casa ouvindo música com ele. Ela, claro, perdeu a companhia.”

Para cumprir tabela – periódica -, Lenine ingressou na Faculdade de Engenharia Química aos 18, mas acabou se mudando para o Rio de Janeiro - onde chegou a escrever roteiros para Os Trapalhões. Resultado: gravou Baque Solto e nunca mais voltou a morar na terra do frevo.

Entre teses e antíteses, sua palavra-chave tornou-se originalidade e sua ferramenta, a curiosidade. “Eu me sinto meio esponja. Sou um cara muito curioso; não tenho `pré-conceitos`, sou aberto a qualquer tipo de expressão musical. Toda vez que desejo fazer um disco, procuro primeiro ver no mercado o que se tem de ferramentas novas.”

 

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