Mudança de hábito

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Kelly Zucatelli

Nando Cunha sai das telinhas e vai para o teatro no papel de Lima Barreto. Foto: Vera Jordan

Manhã de terça-feira. O sol de inverno, com uma leve brisa, aparece no alto do bairro carioca de Santa Teresa. Para o bate-papo em um café da charmosa rua por onde antes passava o bondinho, chega o ator Nando Cunha, que acabara de deixar saudade com o personagem Pescoço da trama global Salve Jorge. Meio acanhado, ele se aproxima de mansinho e dá um ‘bom dia’ discreto, misto de timidez com certo cansaço decorrente das gravações dos últimos capítulos da novela em paralelo com os ensaios da peça Lima Barreto, ao Terceiro Dia, que acaba de estrear no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, por enquanto sem previsão de vir a São Paulo. 

 “Ainda não consegui tirar um dia para descansar e dizer ‘hoje não vou fazer nada’”, brinca o ator. O look básico, composto de camiseta, calça jeans e óculos escuros, não foi suficiente para deixá-lo no anonimato entre as pessoas que passavam pela rua. “Fala, Pescoço!”, “Oi, Pescoço!”, diziam homens e mulheres. “Estava no banco ontem e alguns fãs chegaram pedindo para tirar foto com o Pescoço. Tirei, mas disse logo que o personagem já está enterrado e que é hora de pensar em outros”, lembra Nando, que já arrisca em dizer que o novo Pescoço da televisão será a atriz Tatá Werneck com o papel da periguete Valdirene na novela das 21h, Amor à Vida. “Ela é talentosa e com certeza fará muita gente rir.” 
Com a filosofia de sempre manter os pés fincados no chão, Nando lida bem com a fama momentânea de seu personagem do morro, representando claramente as gingas e a malandragem do homem carioca em meio às dificuldades sociais, mas sem dispensar doses de bom-humor. Dessa forma, troca os bordões que fizeram tanto sucesso no folhetim de Glória Perez – como ‘sai da garrafa’, ‘em terra de saci, uma calça dá para dois’ e ‘santo que não ajuda não canta nem para subir’ – pela poéticas expressões de cunho social propagadas há um século pelo escritor Lima Barreto (1881-1922). 
A troca da roupagem da telinha para o palco exige trabalho dobrado para Nando colocar o melhor em cena. E  o momento também é outro para o morador da Tijuca, que acaba de voltar aos bancos da universidade para concluir a licenciatura em Teatro. “Tive um ano para preparar o (personagem) Pescoço. Todo dia tentava entender o que a autora queria de mim. Tinha dias que no roteiro havia apenas uma ou duas frases, e eu pensava o que inventar para ser criativo e dar vida a ele. A Roberta (Rodrigues, que viveu a personagem Maria Vanúbia) me ajudou muito. Sempre pensávamos nas várias maneiras de fazer com que todos rissem. E quando o pessoal do set começou a achar engraçado, tivemos o termômetro de que aquele era o caminho”, detalha. 
O discurso descontraído só muda quando, entre um café e outro, Nando Cunha começa a falar do seu novo personagem. “O Lima (Barreto) já dizia: ‘A vida é um rio tormentoso que corre para o mar’. Vejo isso quando se fala de quem vive da arte. Não sabemos como será o amanhã nessa carreira. Temos que ser criativos. Colocar emoção em cada um dos personagens de maneira diferente.” 
Durante a novela, Nando não teve tempo hábil para a prática laboratorial. Conta que aproveitou um dia de folga para ir a um bar no bairro do Bangu e observar como homens e mulheres se comportavam. A partir daí, tirou suas conclusões de como deveria interpretar o  personagem boa-vida e seguir nos próximos capítulos. 
Para ele, o que viveu na pele de Pescoço só confirmou sua identificação com o jeito de quem vive nos morros cariocas. “Sou brincalhão como ele, mas não safado a tanto. Na verdade, o Pescoço era o único cara que estava com a Delzuite (Solange Badim) o tempo todo. Ele conhecia as meninas desde pequeninas. Todo malandro tem uma mulher que ele elege, e ela era a eleita por ele.”
Já para colocar as vestes de Lima Barreto, a conversa é diferente. O estudo do personagem exige maior dedicação. “Ele foi alcoólatra, teve depressão e sofreu rejeição por ser negro. Estou assistindo a vídeos e fazendo pesquisas na internet para aprender um pouco do seu jeito, do seu modo de vestir, e imprimir uma boa carga de expressão corporal e emotiva.”
A fisionomia de orgulho e prazer com a nova interpretação também tem seu tom de protesto quando aponta várias pessoas talentosas que marcaram a história do Brasil e não são lembrados em museus nem como nomes de rua ou de teatro. “Ele (Lima Barreto) era um que merecia ter tido mais reconhecimento. Defendia com garra, em plena época pós-escravatura, a importância de ir em busca dos sonhos, de não parar de escrever a história da própria vida. Acho que essa é uma das minhas grandes semelhanças com Lima Barreto, além de ser negro e um operário da arte. Não deixo de ir atrás do que acredito. O mesmo medo que ele tinha quando as coisas chegavam ao fim, eu também tenho. E aí lembro da frase: ‘Somos nós que fazemos a nossa travessia’.”
 
REFERÊNCIAS
Como se espelhar em referências de atores e atrizes que brilham e marcam história na dramaturgia é algo normal no meio, Nando Cunha não foge à regra. Se o olhar for o lugar comum daqueles que todos gostam e admiram, seu professor é Tony Ramos. Mas também busca inspiração em outros. “Tem tantos atores legais. Gosto do Domingos Montagner, por sua postura para a arte. Ele tem um circo! É um ator tipo galã e ao mesmo tempo muito simples. É por isso que gosto do trabalho dele, pela simplicidade. Ele vive de arte da maneira mais desprovida de vaidade, que é ser circense”, diz Nando sem poupar críticas ao deslumbramento da nova geração de atores. “Eles querem camarote vip, fazer festa. Não estão errados porque temos que estar na prateleira para nos vender, mas é muito relativo. Também dá para se vender com a sua arte. Comigo foi assim, graças a Deus. Com todo esforço, preconceito e discriminação, consegui furar muitas barreiras e hoje posso até dizer que sou referência para outros meninos negros que queiram seguir a carreira sem estar namorando uma mulher fruta.” 
A mensagem de foco que nunca sai da cabeça d


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