As várias faces da neurose

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Felipe Castro

Há estimativa de que existam, pelo menos, 380 grupos em atividade no país Foto: Divulgação

O professor de inglês não consegue ter foco na hora de compor as músicas de sua banda de rock. O servidor público relaciona sua angústia e seus pensamentos depressivos às mazelas causadas pelo capitalismo e à desigualdade social. A dona de casa tem os pais doentes e se sente culpada por não ter conseguido, ainda que em um momento delicado, esquecer as mágoas que eles lhe causaram. Sem família, o morador de rua reconhece-se como dependente químico, mas acha que é da neurose que ele deve se afastar primeiro. São pessoas assim – cujos problemas variam dos mais simples aos mais complexos; dos mais banais aos que inspiram cuidados médicos e tratamento psiquiátrico – que costumam frequentar reuniões semanais de N/A (Neuróticos Anônimos) em todo o País. Atualmente, o Enabra (Escritório de Serviços Gerais de Neuróticos Anônimos no Brasil) estima que pelo menos 380 grupos estejam em atividade no território nacional, seis deles no Grande ABC (três em São Bernardo, dois em Santo André e um em São Caetano). 

 
Apesar do termo ‘neurótico’ remeter, à primeira vista, ao estereótipo de pessoa louca, descontrolada, fora de si, os encontros reúnem indivíduos muito mais comuns do que se imagina. Na definição da própria ‘irmandade’ (como N/A se autorreferencia), neurótica é qualquer pessoa cujas emoções interferem em seu comportamento, de qualquer forma e em qualquer grau, segundo ela mesma o reconheça. “Nas reuniões, todos estão lá para ouvir o que o neurótico tem a dizer. E assim, aprendendo com a experiência do outro, a pessoa passa a se sentir melhor”, afirma a dona de casa A.F.A., que frequenta o grupo desde 2005. 
 
Não se trata apenas, no entanto, de uma reunião na qual as pessoas trocam experiências pessoais. Nos encontros que a reportagem da Dia-a-Dia frequentou durante quatro meses, no Grupo Lírio da Paz (Rua Joaquim Nabuco, Centro de São Bernardo), chamou atenção a existência de uma vasta literatura própria, que norteia a recuperação dos chamados neuróticos. Em seu modus operandi, é inevitável dissociar N/A de seu irmão mais velho, o A.A. (Alcoólicos Anônimos). É dele que os Neuróticos pegaram emprestado a literatura e o programa de passos e tradições – com adaptações, é claro, para o tema em questão, como já acontece com o N.A., ou Narcóticos Anônimos (a barra é o que diferencia a abreviação de Neuróticos para Narcóticos, que trata problemas inerentes à dependência química). 
 
Até mesmo as histórias de neuróticos e alcoólicos se confundem. Fundador do primeiro núcleo de N/A em Washington D.C. em 1964, o psicólogo norte-americano Grover Boydston era frequentador de A.A. de longa data, até se dar conta de que seu vício em álcool era fruto de problemas emocionais anteriores. Aproveitando o sucesso das reuniões entre dependentes, ele reutilizou os conceitos para criar o N/A. Com trajetória semelhante à de Boydston, o servidor público A.A.S. costuma dizer que “todo alcoólatra, no fundo, é um neurótico, mas nem todo neurótico é alcoólatra”. Ele frequenta encontros de alcoólicos há 15 anos e de neuróticos há 11, e não quer se ver livre das reuniões semanais tão cedo. Isso porque a entidade não trabalha com a noção de cura definitiva. 
 
Ao iniciar os depoimentos, todos os participantes se apresentam como ‘neuróticos em recuperação’. A justificativa, segundo a literatura, é que a neurose deve ser tratada de forma perene, exigindo recuperação constante e progressiva. “Depois de determinado tempo frequentando as reuniões, posso me sentir curado, de bem comigo mesmo, e achar que não preciso voltar mais. O problema é que, depois de um tempo, tenho recaída e volto a me sentir nervoso, egoísta. Então, de nada adiantou”, explica o representante comercial E.G., lembrando o mantra máximo dos Alcoólicos Anônimos, ‘só por hoje’, que é facilmente aplicado também à realidade de neuróticos. 
 
Em meio à literatura extensa de que N/A dispõe, o chamado livro verde é carro-chefe. Como estudantes que devoram as apostilas pré-vestibular, os integrantes do grupo sabem de cor e salteado o conteúdo que Passos e Tradições a Caminho da Sanidade traz ao longo de 136 páginas, reunindo o bê-á-bá dos preceitos do grupo. 
O primeiro passo pede que o ‘doente’ se reconheça e se admita como tal. O quarto sugere a criação de um ‘minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos’. Já o oitavo encoraja o neurótico a fazer uma relação de todas as pessoas que já foram prejudicadas pela sua ‘doença’. As tradições, por sua vez, trazem não imperativos, mas ideias que formam a concepção de N/A.
 
SEM JULGAMENTOS
Pelas regras de convívio, cada neurótico anônimo tem dez minutos para dar seu depoimento. Alguns preferem desabafar e expor os problemas pessoais, o que é mais corriqueiro. Outros, com mais tempo de casa, elogiam o programa de recuperação e traçam paralelo entre o momento estável pelo qual passam hoje e o estágio inicial, de neurose e depressão. Há ainda os que se sentem à vontade em ambiente de estranhos e, logo na primeira reunião, expõem detalhes sórdidos e minuciosos de sua vida pessoal, como a reunião em que um dos participantes tratou de enumerar, sem pudores, os problemas que tinha com sua mulher, também frequentadora do grupo. Tudo isso, no fim das contas, pouco importa. O Neuróticos Anônimos se alicerça em noções de confidencialidade extrema, anonimato dos participantes e não julgamento. Como os integrantes se dispõem na sala em um semicírculo ou círculo, quem se senta à cadeira principal e dá seu depoimento não deve ser interrompido por nenhum dos participantes, tampouco julgado, analisado ou criticado. 
 
Esse é um dos trunfos do N/A em relação ao tratamento psicológico convencional, opina Antônio Serafim, psicólogo e professor do curso de pós-gradu


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