Palavras do profeta

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Miriam Gimenes

Gentileza gera saldo positivo no balanço da satisfação pessoal Foto: Divulgação

Uma das situações mais triviais do cotidiano é o ato de cumprimentar as pessoas. E não há nada mais irritante do que dirigir um simples ‘bom dia’ a alguém e o interlocutor permanecer em desconcertante silêncio, como se o outro não existisse. Repare. Este é apenas um dos inúmeros exemplos de falta de cordialidade que ocorrem diariamente. E qual o diagnóstico para tamanha indiferença? As pessoas ficam tão envolvidas com questões urgentes – leia-se trabalho, compromissos, contas a pagar – que se esquecem de primar pelo que mais importa na vida: as relações. Como disse o escritor francês Joseph Joubert (1754-1824), “a gentileza é a essência do ser humano; quem não é suficientemente gentil, não é suficientemente humano”. 

Está dado o recado. A partir da leitura desta reportagem comece a observar sua conduta e a das pessoas com as quais tem contato, seja em casa, no trabalho, no supermercado ou na sala de espera do consultório. A tendência a desprezar o outro percorre a contramão da via que nos leva ao caminho da satisfação plena. Estudo recente feito pela professora de Psicologia Sonja Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, testou o reflexo que as atitudes gentis geraram na vida dos participantes, que foram avaliados durante dez semanas. A especialista constatou que, com o passar dos dias, houve aumento gradativo do índice de felicidade entre os que praticaram a gentileza.   

É claro que não é possível ser cordial, educado e afável 24 horas por dia. Mas exercitar essa virtude gera saldo positivo no balanço da satisfação pessoal. É o que garante a autora do livro O Poder da Gentileza, Rosana Braga. Segundo a escritora, que ministra palestras sobre o assunto, a energia recebida após um ato gentil funciona como injeção de vitamina, em todos os sentidos. “É uma questão de saúde física e emocional. Física, sim, porque o corpo é também uma resposta ao que sentimos e ao modo como nos relacionamos com as pessoas. Quanto mais tensas forem nossas relações, mais estresse geraremos e mais o nosso organismo irá se fragilizar, abrindo espaço para doenças como hipertensão, alergias, enxaquecas e gastrite nervosa”, explica. No campo emocional, a manutenção de relações harmoniosas evita o desenvolvimento da ansiedade e da depressão – doença considerada o grande mal do século 21.  
 
José Datrino (1917-1996) não era letrado, tampouco baseava sua conduta em resultados de pesquisas. Mesmo assim, tornou-se o maior símbolo da afabilidade no Brasil. Conhecido como Profeta Gentileza, ganhou nome de rua, página póstuma no Facebook, homenagem de escola de samba, camisetas e acessórios com suas frases. Para alcançar esse status, estudou na escola da vida e tomou como norte a nobre “missão” – como dizia ainda adolescente – de sair perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro levando palavras de bondade e respeito, eternizadas em 56 pilastras que sustentam o Viaduto do Caju. Missão esta diplomada com louvor nos versos finais da música Gentileza, composta por Marisa Monte em sua homenagem: Amor, palavra que liberta, já dizia o profeta.
 
ENSEJO DE BONDADE
A peregrinação do Profeta Gentileza pelas ruas do Rio de Janeiro não começou à toa. Teve início em 1961, após o dramático incêndio no Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, cuja história virou livro: O Espetáculo Mais Triste da Terra, do jornalista Mauro Ventura. Dado como a maior tragédia da história envolvendo um circo, o acidente deixou mais de 500 mortos e comoveu José Datrino, que imediatamente deu partida em seu caminhão para socorrer as vítimas do desastre. Além da sua incansável ajuda física, ele distribuiu alento aos familiares que perderam entes no local. Dizia ter recebido naquele dia o aviso divino de que teria de largar tudo – família e negócios – para “perdoar a humanidade, ensinar a perdoar uns aos outros e mostrar o caminho da verdade, que é o nosso Pai”. 
 
Insanidade ou realismo, o fato é que sua ajuda foi de grande valia para quem havia perdido tudo ali, inclusive familiares. Muitas pessoas ficaram profundamente gratas por sua ação. "Havia quem estivesse disposto a se matar, destroçado pelas perdas, e ele os demovia com frases como: ‘O seu papai, a sua mamãe, a sua filha, o seu filho não morreram. Morreu o corpo, o espírito não. Deus chamou. Até o pior pecador se salvou, porque Deus não é vingativo. Todos vieram aqui alegrar o coração e acabaram vítimas de uma traição’.”
 
Não satisfeito, Datrino plantou um jardim sobre os destroços e passou a morar no local – que intitulou Paraíso Gentileza – durante quatro anos. Saiu, então, pelas ruas cariocas, em ônibus, trem, barca, pregando e pedindo mais amor ao próximo e à natureza. Como tinha experiência no campo – quando criança, amansava burros de carga –, definia-se “amansador dos burros homens da cidade, que não tinham esclarecimento”. Em 1980, fez os famosos murais.
Segundo Ventura, ser gentil para ele significava poder voltar a ser gente – o que, de algum modo, teríamos deixado de ser. “O que nos priva dessa condição é o egoísmo, que distancia as pessoas no mundo do ‘capeta-capital’ como uma espécie de esquecimento da espiritualidade/comunidade. Por isso, mais recentemente venho compreendendo a sua máxima (gentileza gera gentileza) no sentido de ‘humanidade gera humanidade’. E entendo que isso é amplamente aplicável, independentemente de se professar religiosidade ou não.”
 
Datrino enveredou em pregação anti-imperialista para mostrar como o capitalismo – ou ‘capetalismo’ como dizia – era responsável pelo egoísmo, pela negação do outro, pela competição, pelo individualismo. Do seu legado, além do que já foi dito, restaram algumas organizações não governamentais. Um dos movimentos mais conhecidos é o Rio com Gentileza, criado após os seus escritos terem sido pintados de cinza e deteriorados por vândalos – sendo posteriormente restaurados com o apoio de diversos setores da sociedade. O Profeta Gentileza morreu em 1997, aos 79 anos, na sua cidade natal, Mirandópolis, m


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