Coração de campeão

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Raquel de Medeiros

Cigano almeja recuperar o cinturão ainda este ano

Diz o ditado que as adversidades não tornam os homens melhores nem piores, apenas nos revelam como são. No caso do lutador Junior dos Santos, o Cigano, as dificuldades só serviram para comprovar o que, de fato, ele sempre foi: um vencedor. Com espírito nômade que não nega o apelido, ele mudou-se para Salvador, na Bahia, aos 18 anos, em busca de uma vida melhor. Colocou a mochila nas costas, R$ 80 no bolso, confiou na intuição e partiu da cidade de Caçador, em Santa Catarina, rumo à capital baiana. “Minha ida, independentemente de como fosse, não ia ter volta. Era uma escolha só, e tinha que dar certo.”

Lutador ele já era, mesmo sem saber. A garra para sobreviver e superar-se sempre esteve no sangue do catarinense, que insiste, teima e persiste até alcançar. A dificuldade era mero detalhe dentro do coração, que pulsava por mais. Vindo de família humilde, com uma mãe para cuidar de três filhos, não havia alternativa senão ajudar. O pai havia saído de casa. Então, com 10 anos, Junior virou vendedor de picolé. Aos 14, já tinha a carteira de trabalho assinada como entregador de jornal. E se desdobrou em muitos para colher feijão, maçãs, cuidar de jardins, capinar e atuar como servente de pedreiro. Não havia tempo ruim nem ofício que não fosse digno. 
 
Em Salvador, aceitou o primeiro emprego que apareceu, de garçom. Chegou em uma sexta-feira e começou a trabalhar no dia seguinte. A vida fora do octógono já era difícil e suada. Ruim? Talvez. Mas todos os reveses serviram para preparar o atleta para o momento em que se tornaria um lutador no literal sentido da palavra.
O mais surpreendente é que, entre tantas experiências, Cigano jamais cogitou tentar o esporte. “Nunca pensei em ser atleta, nada”, diz. O único contato com o mundo das artes marciais havia ocorrido aos 14 anos, quando tentou aprender capoeira “de brincadeira”. Mas não durou muito. “Fiz só uns dois meses.”
 
Na época, os atletas brasileiros Antônio Rodrigo Nogueira, o Minotauro, e Wanderlei Silva se destacavam no Pride e chamaram atenção de Cigano, que até então era só um admirador do MMA (Mixed Martial Arts). “Comecei a sonhar em ser lutador. Pensei: ‘Quero fazer isso, acho que vai ser uma válvula de escape para mim, uma saída desse mundo em que vivo’. E foi.”
 
ATRÁS DO SONHO
A luz no fim do túnel começou a aparecer quando Cigano conheceu a ex-mulher e hoje empresária de sua carreira, Vilsana Picolli. “Eu estava com 21 anos, era meio gordinho e trabalhava em uma loja de brinquedos.” A arquiteta foi seu braço direito e deu todo o apoio que o lutador precisava no momento em que decidiu entrar no octógono. “Ela disse que se eu acreditasse e quisesse mesmo, ela daria um jeito. Era para eu tentar. Ela foi e é a principal força da minha carreira.”
Na época, Cigano era considerado velho para começar, já que a maioria dos lutadores se inicia nas artes marciais ainda durante a infância ou adolescência. Mas não teve medo de fracassar. A mente trabalhava sempre de forma positiva em busca do objetivo. “Independentemente do quão difícil seja, eu sempre penso que vai dar certo.” 
Cigano treinava dia e noite, sem descanso, e servia de sparring aos outros atletas (simulando ser o adversário). “Apanhei muito (risos). Aprendi tudo na raça. Apanhava hoje e no dia seguinte estava lá para apanhar de novo. Então, acho que foi isso que me fez aprender.”
 
Logo teve de parar de trabalhar. Precisava dedicar-se 100% ao novo projeto. “Eu, que estou acostumado desde novinho a ganhar meu próprio dinheiro, fiquei seis meses sem poder ajudar.” E a ex-mulher continuou firme ao lado do lutador: “Com a Vilsana, sempre foi muito tranquilo, porque eu vi que não era nada dela ou meu, era nosso”.
Cigano podia não ter dinheiro nem certeza de que iria dar certo, mas tinha características imprescindíveis: foco e dedicação. Qualidades típicas dos vencedores. E não demorou até que o mestre de jiu-jítsu Yuri Carlton percebesse. “Eu precisava fazer testes e o chamei para fazer sparring comigo. Ele não tinha experiência, mas em momento algum desistiu. Mantinha-se ali, mesmo desgastado, para mais um round”, disse o primeiro professor do catarinense.
 
O que mais chamou atenção de Carlton foi a facilidade que Cigano tinha em aprender. “Ele era leigo, mas tinha habilidade incomum, de fácil visualização. Além disso, possuía vigor físico, que me impressiona até hoje.” Não demorou muito para Carlton apresentar o lutador ao ‘papa do boxe’, Luiz Carlos Dórea, que também teve boa impressão do esportista. “Ele tem muita disciplina, garra, sabe o que quer, não faltava nunca. Tem coração de campeão”, diz Dórea. E a trajetória começou a ser traçada.
A rotina era pesada. Durante o dia, Cigano treinava boxe com orientação de Dórea e, à noite, praticava jiu-jítsu com ajuda de Carlton. Apenas três anos depois, deu-se a estreia no UFC (Ultimate Fighting Championship), o campeonato mais disputado pelos lutadores de MMA. Era outubro de 2008. “Nunca imaginei que as coisas seriam tão rápidas.”
 
Cigano enfrenta o norte-americano Roy Nelson Foto: Divulgação
AMIZADE PARA A VIDA
O homem imponente e de traços fortes suaviza as sobrancelhas franzidas para falar dos parceiros de trabalho, a quem ele chama de amigos. A grande inspiração, segundo Cigano, sempre foi Antônio Rodrigo Nogueira, o Minotauro. “Desde a época do Pride, era fã. E poder conhecê-lo foi uma emoção muito grande. Um dia, o Yuri me chamou e perguntou se eu queria vê-lo. Fui e ajudei no treino dele. Poder ter esse contato foi muito especial, acho que foi uma das coisas que me alavancaram também.” 
Minotauro lembra-se bem deste dia. “Logo no primeiro treino que vi do Cigano, percebi que era um atleta diferenciado. Ele é um cara que tem talento nato para as lutas, além de ser muito focad


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